‘O Buda no
sótão’ cobre o período de uma onda de
imigração japonesa para os Estados Unidos por volta de 1900 até o
desaparecimento em massa desses imigrantes na época da Segunda Guerra. Em uma
narrativa composta por uma mistura de vozes, Julie Otsuka fala sobre a experiência das noivas japonesas que
chegavam à terra do Tio Sam para se casar com maridos que não conheciam, sobre
o duro trabalho nas plantações, sobre a saudade da pátria e dos familiares,
sobre sonhos e decepções.
Eu, nós, elas... todas mulheres. A reconstrução da
memória das imigrantes japonesas é feita de forma coletiva, reforçando a
vivência de grupo, a repetição dos padrões, os horrores comuns ao sexo
feminino. Já no navio, elas sofrem em porões escuros, apertados, úmidos e
fedorentos. Têm que lidar com a fome, o enjoo, a saudade de casa, os ataques
dos marinheiros. Mas o sonho de um recomeço em uma terra distante, com um
marido e uma chance de constituir família, mantinha a esperança das noivas.
Só
que, ao chegarem ao porto, vem a primeira decepção: os futuros esposos não eram
tão jovens quanto nas fotos, vestiam trajes surrados e provavelmente os poemas
e cartas enviados às noivas nem haviam sido escritos por eles. O terror das
esposas começa assim que desembarcam, com noites de núpcias na maioria das
vezes violentas, com homens estranhos e, não raro, bem mais velhos que elas.
Ensinadas
a vida inteira a serem cordiais, silenciosas e invisíveis, as japonesas apenas
juntam seus cacos, sorriem discretamente e assumem seus papéis de donas de
casas, esposas, mães e trabalhadoras incansáveis ao lado dos maridos nas
lavouras. Colonos diligentes, eficazes, pacíficos e de baixo custo: o que mais
os donos de terras americanos poderiam querer?
Com
trabalho árduo, os japoneses tiveram êxito na América e em algumas décadas
depois já deixavam o campo para trabalhar em suas lojas. Os vizinhos americanos
gostavam dos serviços dos orientais, contratavam as mulheres como empregadas e
babás, os homens como jardineiros, compravam em seus estabelecimentos. Parecia
que, enfim, que o futuro prometido de prosperidade havia chegado. Até a eclosão
da Segunda Guerra, que deu início à perseguição dos imigrantes japoneses e seus
filhos.
Mais
do que a história que contei resumidamente acima, o que mais impressiona no
livro é a escrita da autora, que cria relatos de sofrimento que arrastam o
leitor para a vida daquelas mulheres. Enviadas para um país longínquo e
estranho pelos próprios pais para se casar com homens que nunca viram, elas
enfrentam a exploração nas plantações, sofrem com um clima quente, com a comida
diferente, com a língua que muitas jamais aprendem. Quando os filhos crescem,
elas mal conseguem se comunicar com eles, já alfabetizados em inglês, e são
motivo de vergonha para seus descendentes. Quando finalmente achavam que a
velhice seria mais tranquila, vem a guerra e um novo pesadelo. É triste demais,
gente.
‘O Buda no sótão’ foi um dos meus
livros favoritos de 2016, mas só agora consegui escrever sobre ele. Obviamente,
não sou capaz de transmitir toda a beleza da obra. Mas deixo aqui a dica e a
forte recomendação de leitura. E aproveito para agradecer a Lígia, do Randomicidades Aleatórias, que me deu o livro. Tem resenha dela AQUI.
“Eu
tinha treze anos e nunca havia olhado um homem nos olhos. Eles nos possuíram
cheios de pedidos de desculpas pelas mãos ásperas e calejadas, e então soubemos
de imediato que eram fazendeiros, não bancários. Nos possuíram cheios de
prazer, por trás, enquanto nos inclinávamos nas janelas para admirar as luzes
da cidade ao longe. ‘Está feliz agora?’, nos perguntavam. Eles nos amarraram e
nos possuíram com rostos colados em carpetes puídos que cheiravam a ratos e
mofo. Nos possuíram intensamente em cima de lençóis com manchas amareladas. Nos
possuíram facilmente e com um mínimo de esforço, porque algumas de nós já
haviam sido possuídas muitas outras vezes. Nos possuíram em meio à bebedeira.
Eles nos possuíram sem cuidado algum, sem preocupação alguma, sem qualquer
pensamento em relação à nossa dor. Eu achei que meu útero ia explodir. Eles nos
possuíram apesar de apertarmos as pernas umas contra as outras, dizendo: ‘Por
favor, não'. Nos possuíram com cuidado, como se tivessem medo de nos quebrar.
Você é tão pequena. Nos possuíram com frieza, mas com conhecimento – Em vinte
segundos você vai perder o controle –, e então soubemos o que muitas outras
haviam passado antes de nós.”
Nota:
5/5
Leitura relacionada:
- Corações Sujos (Fernando Morais) [sobre o efeito da 2ª Guerra nos imigrantes
japoneses no Brasil]
Eu adoro esse livro! É demais!
ResponderExcluirO outro dela, Quando o imperador era divino, também é maravilhoso.
um beijo,
Pipa
Adorei a dica!! Entrou pra lista de leituras! Vi que vc linkou ele ao Corações Sujos. Como eu trouxe ele aqui pro Canadá, vou antecipar a leitura do livro do Fernando Moraes e depois procuro o Buda no Sotão na biblioteca.
ResponderExcluirBjs!!
Estou doida pra ler este livro!!
ResponderExcluirAdorei o post Mi
Bjs
Pipa,
ResponderExcluirSua resenha foi uma das responsáveis por meu interesse nesse livro, então... 'obrigada'! Quero conhecer outros trabalhos da Julie.
Ingrit,
Acho interessante como os dois livros mostram a situação dos imigrantes japoneses em países diferentes na época da Segunda Guerra. Depois conte o que achou ;)
Claudia,
Acho que você vai gostar. Já separei aqui para te emprestar :)