LIVRO:
A Vegetariana
Numa
madrugada, o marido acorda para ir ao banheiro e percebe uma luz vinda da
cozinha. Vai até lá e se surpreende ao encontrar a esposa parada, descalça e
descabelada, diante da geladeira aberta. Ele se aproxima e pergunta se ela sabia
que horas eram. Ela responde apenas que teve um sonho. Ela volta para a cama.
Quando ele retorna ao quarto, pressente que algo estranho está acontecendo com
a esposa. No dia seguinte, seus temores se confirmam quando ela diz que agora
era vegetariana.
Dividido
em três novelas, que podem ser lidas de forma independente ou na sequência, o
livro começa com o esposo da vegetariana contando como a mudança na alimentação
dela transformou completamente o cotidiano deles e as ações dela; depois, na
segunda parte, o narrador é o cunhado, que fica obcecado pela mancha mongólica
da vegetariana e entra numa espiral delirante e destrutiva; na última história,
a irmã da vegetariana é quem assume a narrativa e fala sobre o que aconteceu
meses depois do desastroso jantar em família da primeira novela e do mais
recente trabalho artístico do marido, detalhado por ele mesmo na segunda parte
do livro.
“A
vegetariana” é um livro incrível, que fala de desejos e frustrações, de se
encaixar no sistema e de atender às expectativas alheias. Todos os personagens,
em maior ou menor grau, são resignados e tentam seguir adiante sem pensar muito
a respeito. O marido da vegetariana, por exemplo, tem a esposa “perfeita”,
dedicada, submissa, tranquila, mas pensa constantemente na cunhada, que,
segundo ele, é mais bonita, mais trabalhadora, cozinha melhor e foi até capaz
de gerar um filho. Além disso, ele sofre pressão no trabalho, quer ser
promovido, e o fato de a esposa ter virado vegetariana põe tudo a perder
porque, primeiro, ela joga fora todas as carnes (um sinal de status na Coreia)
e produtos de origem animal que eles tinham em casa e, depois, se recusa a
comer “normalmente” num jantar de negócios que ele fora obrigado a levá-la.
O
cunhado da vegetariana, por sua vez, tem uma esposa que se desdobra para cuidar
do lar, do filho pequeno e da loja de cosméticos, da qual é dona e de onde vem
o sustento da casa, já que o marido é artista, e nem sempre a
"inspiração" dele resulta em grana. Ele que, como dizem, tem a sorte de ter
uma esposa que lhe permite perseguir seus sonhos artísticos, se interessa mesmo
é pela vegetariana, porque ela é "estranha", livre, uma pessoa que,
ao se libertar das convenções sociais pelo simples ato de não comer mais carne,
passa a viver (ou tentar viver) essa liberdade plenamente, desconstruindo passo
a passo a imagem e o comportamento que se esperava dela. A pessoa esquisita, a
desequilibrada, a louca é, por fim, a única que tenta realizar suas vontades,
ainda que tenha que pagar um preço alto por sua rebeldia.
Ainda
no quesito desejo e frustração, a irmã da vegetariana é a representação das
mulheres na sociedade. Ela tenta dar conta de tudo, assumindo, sozinha, os
afazeres domésticos, trabalhando na loja o dia inteiro e cuidando do filho o
tempo todo, passando noites em claro ao lado da criança quando ela adoece, não
deixando que o menino perturbe o descanso merecido do pai (que muitos dias só
fazia fumar e fantasiar com projetos que nunca punha em prática), praticamente
fazendo o dia ter mais horas para que pudesse acomodar todas as suas obrigações
e, ainda assim, jamais recebendo o reconhecimento do esposo. É essa irmã mais
velha quem assume a responsabilidade pela vegetariana internada, depois que os
pais renegam a caçula por insubordinação, que o cunhado pede o divórcio porque
o vegetarianismo estava prejudicando sua carreira, que seu marido arruína o
próprio casamento devido à sua obsessão pela vegetariana e vai embora, deixando
para trás o filho pequeno e duas mulheres destroçadas.
Outro
aspecto interessante do livro é a invisibilidade das mulheres. A vegetariana é
descrita pelo marido como extraordinariamente comum, insípida, calada, apagada.
A irmã dela também age feito uma sombra, mantendo seu pequeno universo familiar
funcionando sem atritos, como se magicamente a casa se arrumasse sozinha, o
filho não desse trabalho nenhum, o serviço na loja não a deixasse cansada. Da
mãe delas é dito que jamais havia desobedecido ao marido – o que não lhe
impediu de levar uns safanões dele – ou tentado aliviar a brutalidade e a
rigidez dele para com as filhas, nem quando eram crianças, nem no momento atual
(como fica claro no dia do tal jantar em família).
Além
de não serem vistas, as mulheres também não são ouvidas. A própria vegetariana,
quando perguntada por que não comia mais carne, responde "Eu tive um
sonho". Ela repete essa resposta diversas vezes, para várias pessoas, mas,
enquanto alguns nem se interessam em perguntar que sonho fora aquele, outros a
escutam, e mesmo assim a ignoram.
A
morte é outro tema que permeia a narrativa. Desde as pessoas que levam uma existência de zumbis, passando pelos animais mortos que acabam
nos pratos, até a iminência do falecimento da vegetariana, que afirma não
precisar mais comer, e que sofre horrores no hospital para ser alimentada à
força. Mais uma vez, surge a questão da vontade. Vale tudo para manter vivo um
corpo, ainda que isso faça o indivíduo sofrer enormemente e não respeite sua
decisão?
Nesse
mundo sombrio e desesperançado, a única coisa que gera uma chama acalentadora é
a proximidade, a cumplicidade entre as duas irmãs. Mesmo numa situação nada
animadora, elas conseguem se reconectar e fazer as pazes. Ainda que o final não
pareça ser feliz.
*O livro
foi lançado em 2007, e essa edição foi traduzida direto do coreano, três anos
antes de o livro vencer o Man Booker Prize 2016 e ganhar tradução para o
inglês. Uma pena que uma obra tão sensacional, lançada ousadamente e sem alarde
pela Devir, não tenha tido o cuidado merecido, tanto de revisão quanto de
divulgação. A Todavia lançará uma nova edição de “A vegetariana” este ano,
traduzida a partir do inglês.
“Não
havia nenhum mal em viver desse jeito, ainda que com uma mulher um tanto
estranha, pensava comigo de vez em quando. Como se fosse, assim, uma desconhecida.
Não, uma irmã, ou uma empregada, que punha a mesa e limpava a casa. Mas uma
abstinência prolongada era difícil de suportar para um homem que estava no auge
do vigor e vinha mantendo uma vida de casado, apesar de um tanto insípida. Às vezes,
quando chegava tarde da noite depois de um jantar de negócios, tomava a esposa
de assalto, fiando-me no calor do álcool. Sentia uma excitação inesperada
quando imobilizava seus braços e tirava sua calça. Soltava palavrões em voz
baixa para a esposa que se debatia violentamente e conseguia penetrá-la uma a
cada três vezes. Então, ela ficava deitada no escuro, olhando para o teto, com
aquela expressão vã como se tivesse sido trazida de mulher de conforto*. Assim
que eu terminava, ela se virava para o outro lado e escondia o rosto na
coberta. E devia se arrumar enquanto eu tomava uma ducha, pois, quando voltava
para cama, estava sempre deitada reta de olhos fechados, como se nada tivesse
acontecido.”
*Comfort
women, eufemismo utilizado para designar mulheres forçadas à prostituição e
escravidão sexual nos bordéis militares japoneses durante a 2ª Guerra Mundial.
Nota:
5/5
Este post faz parte do Desafio Volta ao Mundo em 80 Livros: [Coreia do Sul]. Para ver a apresentação do projeto e a lista de títulos/resenhas, clique AQUI ou no banner na coluna à direita.
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FILME:
A Vegetariana
O
filme é bem fiel ao livro. Até as falas parecem saídas diretamente das páginas.
No entanto, a irmã da vegetariana é a única narradora (onisciente),
então temos apenas a visão dela dos acontecimentos.
A
história começa em retrospecto, com a irmã indo ao hospital visitar a
vegetariana, em uma última tentativa de fazê-la comer antes que a administração
peça a transferência da interna para um hospital maior, com mais recursos. Daí
ela começa a relembrar o início de tudo, quando a vegetariana teve o tal sonho
pela primeira vez e começou a sua transformação.
Se não houve surpresa nenhuma quanto ao desenrolar da trama, pelo menos foi
agradável acompanhar o filme. A cena da pintura dos corpos é especialmente
bonita (embora perturbadora). Da mesma forma, a cena da alimentação forçada no hospital é tão ou mais
angustiante que no livro.
Embora
seja uma boa adaptação, a história perde força nas telas, já que os dilemas e
conflitos psicológicos de seus personagens se diluem quando externalizados. As
vozes dissonantes dos três narradores também constituíam um recurso importante
para a narrativa, e a perspectiva de apenas um deles no filme faz com que o envolvimento com
os dramas de cada um seja menor.
De
todo modo, é um filme bom. Só não dá para comparar com o impacto do livro.
Nota:
3,5/5
Olá Michelle!
ResponderExcluirGostei muito da sua resenha, acabei de ler o livro e queria ver a adaptação para cinema. Onde você encontrou o filme para assistir?
Gostaria de saber onde assistir o filme! Fiquei curiosa!!!
ResponderExcluirNa época baixei em algum torrent. Não sei se saiu em algum lugar depois disso.
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