Leïla
Slimani foi uma das convidadas da FLIP em 2018. Como eu já considerava
participar do evento e estava curiosa para ler “Canção de ninar”, seu primeiro
livro lançado em terras brasileiras, corri para lê-lo. E fui arrebatada pela
escrita afiada e precisa da autora franco-marroquina. Ano passado, a Tusquets
lançou por aqui “No jardim do ogro”, o romance de estreia da escritora. Há
alguns dias terminei de ler essa incrível história e, ainda impactada pela
experiência, decidi resgatar minhas anotações de leitura do primeiro título e
fazer um post de minhas impressões sobre os dois trabalhos da Leïla.
Em “Canção
de ninar” temos uma família que parece saída de um comercial de margarina: Myriam
era uma promessa na faculdade de direito, mas abriu mão da carreira para viver
a maternidade em tempo integral. O primeiro filho mudou sua rotina, claro, mas
em geral tudo parecia se encaixar em seu devido lugar. Quando o segundo rebento
chega, a ex-advogada começa a questionar suas escolhas, sente que está
sufocando em meio a papinhas, banhos e vozes estridentes. Um dia ela tem chance de voltar ao mercado, mas eis que surge a questão: quem cuidará
das crianças? Ela discute as opções com o marido e, meio a contragosto, eles
decidem contratar uma babá. A busca pela candidata ideal é exaustiva, mas enfim
eles parecem ter encontrado uma Mary Poppins para chamar de sua: Louise
é tudo aquilo que eles sonhavam e muito mais. Até o sonho se transformar em
pesadelo.
Adèle,
a protagonista de “No jardim do ogro”, é uma bem-sucedida jornalista.
Ela mora com o marido cirurgião e o filho pequeno em uma área badalada de
Paris. À primeira vista, eles parecem uma família perfeita. No entanto, Adèle
não suporta o esposo e a falsidade das interações sociais, se irrita com a
necessidade de atenção da criança, acha o trabalho um martírio. A única coisa
que a faz se sentir viva é o sexo – o tempo todo, com os mais variados tipos de
homem, cada vez mais frequente e mais violento. E é esse seu vício em sexo que
coloca em risco o mundo de fantasia e aparências em que eles vivem. Embora a
verdade seja arrasadora, é ela quem permite a Adèle embarcar em uma jornada
(dolorosa) de autoconhecimento, e também revela uma face desconhecida (e
perturbadora) do marido.
Enquanto
fazia a leitura do livro de estreia da Slimani, fui notando os assuntos que
permeiam as duas histórias. Já estão presentes em “No jardim do Ogro” as
críticas à burguesia parisiense e suas máscaras sociais, as reflexões sobre
maternidade e seu peso sobre os ombros das mulheres, as relações familiares
problemáticas. Adèle tem um trabalho invejável e faz o que quer, mas não se
sente satisfeita. Embora tenha os instrumentos de que necessita para assumir o
controle de sua vida, ela tem uma obsessão com seu corpo e sua aparência, uma
necessidade de ser olhada e desejada o tempo todo, ou seja, coloca sua
realização nas mãos de terceiros, só existe aos olhos do outro. Ela teme a
solidão. Sente um desprezo enorme pela mãe, mas age exatamente como ela,
reproduzindo em seu casamento a mesma receita de infelicidade.
“Lucien
é um peso, uma restrição com a qual ela tem dificuldade de se acomodar. Adèle
não consegue saber onde se aninha o amor por seu filho no meio de seus
sentimentos confusos: pânico de ter de confiá-lo a alguém, irritação ao vesti-lo,
exaustão ao subir uma ladeira com seu carrinho que opõe resistência. O amor
está lá, ela não tem dúvida. Um amor rudimentar, vítima do cotidiano. Um amor
que não tem tempo para si mesmo. Adèle fez um filho pela mesma razão que se
casou. Para pertencer ao mundo e se proteger de qualquer diferença com os
outros. Ao se tornar esposa e mãe, ela se cercou de uma aura de
respeitabilidade que ninguém pode lhe tirar. Construiu para si um refúgio para
as noites de angústia e um recuo confortável para os dias desregrados.”
(Trecho
de “No jardim do ogro”)
Em
“Canção de ninar”, a autora vai além e aborda de forma mais intensa a xenofobia e
a solidão na velhice. E, se no livro anterior ela já cutucava a ferida das
diferenças de classes, no segundo trabalho ela enfia o dedo até o fundo no ferimento. Sem
dúvida, tanto Myriam quanto Louise sofrem as pressões, cobranças e
recriminações por não serem mães perfeitas; ambas tentam fazer o seu melhor e
se sentem fracassadas o tempo todo. Mas é aí que reside uma diferença crucial:
enquanto para a primeira o trabalho significa realização profissional e o
reconhecimento de sua identidade de mulher (não apenas de mãe), para a segunda
significa sobrevivência. Louise dedica toda a sua atenção, todo o seu tempo e
todo o seu carinho às diversas crianças que não são suas, enquanto a própria filha sofre com a sua ausência, com a indiferença gerada pelo
cansaço da mãe, com as humilhações por parte dos filhos dos patrões nas raras ocasiões
em que vai às casas deles. De certo modo, Louise é como Adèle e também só
existe aos olhos dos outros: quando as crianças já estão crescidas e a pobre
Louise está velha demais, ela se desfaz, perde a serventia, vira abóbora.
“Pela
primeira vez, pensa na velhice. No corpo que começa a sair dos trilhos, nos
gestos que fazem doer até dentro dos ossos. Nos gastos médicos que aumentam. E
depois a angústia de uma velhice mórbida, deitada, doente, no apartamento com
os vidros sujos. Isso virou uma obsessão. Ela odeia esse lugar. Está obcecada
pelo cheiro de podridão que vem do box do banheiro. Ela o sente até na boca.
Todas as juntas, todos os interstícios se encheram de um musgo esverdeado, e
por mais que ela o esfregue com raiva, ele renasce durante a noite, mais denso
que nunca. Um ódio cresce dentro dela. Um ódio que contraria sua tendência
servil e seu otimismo de criança. Um ódio que embaralha tudo. Está absorvida em
um sonho triste e confuso. Assombrada pela impressão de ter visto demais,
entendido demais a intimidade dos outros, uma intimidade a que ela nunca teve direito.
Nunca teve um quarto para si.”
(Trecho
de “Canção de Ninar”)
Notas: Canção de Ninar: 5/5 - No Jardim do Ogro: 5/5
Este post faz parte do Desafio Volta ao Mundo em 80 Livros: [Marrocos]. Para ver a apresentação do projeto e a lista de títulos/resenhas, clique AQUI ou no banner na coluna à direita.
Ótima resenha em dose dupla, Mi!
ResponderExcluirEu adorei Canção de ninar e gostei do Jardim do Ogro, embora não tanto quando o canção.
Aquele marido, do ogro, me irritou profundamente...rs.
A escrita da Leila é ótima e espero que venham outros livros dela por aí
Bjs
Claudia
Clau,
ResponderExcluirSim! Aquele marido do "Ogro" me deu nos nervos também!
E espero mesmo que saiam logo outros livros da Leïla.
Beijo!