LIVRO: Pacto Sinistro
Numa
viagem de trem, dois estranhos se encontram, conversam, comem juntos. Conforme
o papo evolui, falam de suas vidas, fazem confidências. De repente, um deles
tem uma ideia genial: e se um matasse o desafeto do outro? A polícia jamais
descobriria, pois não haveria motivo para o crime e não saberiam nem por onde começar a
investigar. O plano é perfeito, mas, como diz o ditado popular, crime perfeito
não existe.
Não
sei se alguém já tinha apresentado essa ideia de assassinato trocado antes,
mas, sem dúvida, Patricia Highsmith desenvolve magnificamente a trama baseada
nessa possibilidade. Apesar de parecer estapafúrdio matar alguém que nem se
conhece em troca do mesmo favor, o plano é de uma simplicidade tão grande que
tem grandes chances de dar certo. E realmente daria, se um dos envolvidos não
ficasse obcecado pela vida do outro e quebrasse a promessa de nunca mais se
falarem.
Guy
Haines é um homem que está num momento delicado: prestes a assumir um grande
projeto na firma de arquitetura (e ter a chance de ver seu talento reconhecido)
e, ao mesmo tempo, enfrenta um divórcio complicado, que há muito desejava para
poder se unir à nova namorada, mas que a ex-esposa lhe negava. Agora que a ex
engravidou e também pretende se casar novamente, Guy vai encontrá-la para
assinar os papéis. Sua vida parece estar finalmente entrando nos eixos. É nisso
que ele pensava enquanto rumava para a cidadezinha de Metcalf e conhece Bruno
no trem.
Charles
Anthony Bruno é o típico garoto mimado que não pode ser contrariado e não sabe
lidar com a rejeição. É evidentemente um daqueles sujeitos sem propósito na
vida, que passa os dias enchendo a cara e torrando a grana do pai. Quando seu
genitor decide acabar com a mamata do garotão, ele faz birra e decide se
vingar. Sendo dotado de enorme imaginação, elabora o plano de assassinato duplo
e, na conversa que tem com Guy no trem, vê a oportunidade perfeita de colocar
em prática o que havia imaginado.
Guy
e Bruno são completamente opostos: enquanto o primeiro é um homem dedicado ao
trabalho, sensato e de boa moral, o segundo só quer saber de farra, pensa
apenas em ter suas vontades satisfeitas e faz o que tiver que fazer para
conquistar seus objetivos. Enquanto Guy é movido por amor, Bruno vive de ódio;
se o primeiro é bem-resolvido nas questões do coração, o segundo é solitário e
faz qualquer coisa para chamar a atenção. A relação que se estabelece entre
eles vai além da dependência causada pelos crimes, já que Bruno se infiltra
cada vez mais na vida de Guy, que acaba atormentado e passa a agir de forma estranha
e descuidada, querendo apenas se livrar do intruso. Sentimentos de pena e
desprezo, raiva e carinho, interesse e repulsa se misturam e tornam os supostos
desconhecidos cada vez mais unidos.
Mais
do que uma história de investigação policial, é uma trama psicológica, na qual
acompanhamos as transformações dos personagens em uma espiral de destruição.
Escolhi este livro para representar o tema "mentiras" do Desafio Literário Skoob e minha opção não poderia ter sido melhor. A falsidade vai desde as
artimanhas para despistar a polícia e a invenção de histórias para os
investigadores até a enganação de parentes, chefes e a si mesmos. Ah, sim,
também tem a traição entre os parceiros de crime. Simplesmente perfeito!
O
livro tem uma influência fortíssima de Dostoiévski, com a culpa sendo o pior
castigo de todos. A aflição é tanta que, em determinado momento, Guy cogita
seriamente se entregar à polícia para aliviar o peso na consciência,
mas logo percebe que nem isso aplacaria seu sofrimento. Estava condenado a
conviver para sempre com sua tortura mental.
“A
angústia estivera sempre com ele, era uma batalha interior, um tormento tão
intenso que chegava a desejar a intervenção da justiça. A lei social era
indulgente, comparada com a da consciência. Podia procurar a justiça e
confessar, mas a confissão parecia uma questão menor, um simples gesto, até
mesmo uma maneira de escapar, um esquivar-se à verdade. Se a lei o capturasse e
o castigasse, mesmo isso seria apenas um gesto”.
Suspense
psicológico de primeira. Nem preciso dizer que adorei e recomendo, né?
Este
é o segundo livro/filme que encaro no ‘Hitchcock Reading Project’, e uma coisa
já ficou clara para mim: embora Hitch faça filmes incríveis, nem de longe eles
podem ser considerados adaptações fiéis dos livros. ‘Levemente inspirado’ na
história X seria uma descrição mais apropriada.
Aqui,
mais uma vez, ele pega a ideia central do romance da Highsmith e segue do jeito
que mais lhe convém, fazendo desde pequenas alterações (como a troca da
profissão de Guy de arquiteto para tenista), criando personagens (a atual
namorada de Guy agora tem uma irmã mais nova, fundamental para a trama) e
mudando completamente o desfecho da história. No entanto, a perturbação dos
personagens está lá, intensificada lindamente pelo estilo narrativo do diretor.
O
fato é que, deixando o livro de lado, o que vemos na tela é um excelente
trabalho de Hitch, evidenciado já nas primeiras cenas, que mostram os trilhos
do trem e depois passos de dois personagens distintos, que só identificamos
pelos sapatos e pelo andar. Antes mesmo de conhecermos os rostos daqueles
homens, já era possível saber que um era despojado e rico, enquanto o outro era
um sujeito comum e contido. Coisa de gênio.
Não
vou falar muito sobre o filme porque sua força está em acompanharmos o
desenrolar da história e mergulharmos nas aflições dos personagens, sentindo
que afundamos aos poucos e vamos perdendo o ar. Só o que posso dizer é que o
gorducho sabia mesmo como prender a atenção do público e tinha o dom de
transformar coisas inocentes em instrumentos mortais. Se, graças a ele, o medo
que eu tinha de pássaros de transformou em fobia, agora jamais verei um simples
carrossel como um brinquedo bobo e sem graça. Duvido que alguém que tenha
assistido a esse filme não pense duas vezes antes de se sentar naqueles cavalinhos
singelos.
Suspense
maravilhoso e angustiante com uma das melhores cenas de clímax que já vi. Pode
passar o filme na frente dos outros da sua lista. Certeza que você não vai se
arrepender!
Este post faz parte do 'Hitchcock Reading Project'. A lista de livros e suas adaptações com as respectivas resenhas está AQUI.
Trailer (sem legenda):
3 comentários:
Adorei a dica, Michelle! Inclusive a biografia da Patricia é o livro de maio do Fórum Entre Pontos e Vírgulas, mas nunca li nada dela. Agora não sei se vejo o filme ou leio o livro... Risos.
Beijo! ^_^
Adorei a resenha! Tanto o livro quanto o filme parecem ser ótimos :)
Oi, Michelle.
Adorei a resenha!
Não conhecia o livro e agora fiquei com bastante vontade de ler! Achei a ideia de "assassinatos trocados" muito legal e fiquei bastante curiosa.
Bjos,
Helena
http://doslivrosumpouco.wordpress.com
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