sábado, 12 de maio de 2018

Resenha: Oryx e Crake



A história se passa num futuro de data incerta, no que restou do que um dia foi o planeta Terra. Quem narra a história é o Homem das Neves, uma espécie de náufrago - e supostamente último exemplar do Homo sapiens - que passa o dia empoleirado numa árvore, tentando ignorar a fome que faz seu estômago roncar e lutando com suas lembranças de uma outra era, quando ele era conhecido como Jimmy, tinha Crake como melhor amigo e Oryx como a garota de seus sonhos.

Contada em retrospecto e de forma não-linear, a trama nos apresenta um mundo pós-apocalíptico, no qual a humanidade já não existe mais (exceto pelo Homem das Neves) e, em seu lugar, ficaram os Filhos de Crake, humanoides geneticamente modificados para serem a versão 2.0 da espécie anterior, dotados de imensa inteligência e com um corpo mais bem desenvolvido para se adaptar ao ambiente em que vivem. Para eles, o Homem das Neves é apenas um elo com o passado distante e desconhecido, a quem consultam mais por curiosidade do que por necessidade.

É através das lembranças do Homem das Neves/Jimmy que conhecemos o planeta pré-destruição, quando os níveis de desigualdade social eram enormes e os mais abastados foram morar nos Complexos, centros urbanos cercados e superprotegidos que deixavam de fora toda a pobreza, a feiura e os perigos das cidades reais. Nos Complexos estavam também as mentes mais brilhantes, responsáveis pelas pesquisas mais importantes, pelos avanços tecnológicos mais espantosos, que iam desde a cura de certas doenças e produtos que conseguiam manter eternamente a aparência jovem das pessoas até novas formas de alimentos capazes de alimentar a crescente população de um planeta sem terras cultiváveis (como os porcões – que me lembraram muito o Okja) e espécies de animais híbridas (lobocães, por exemplo). Ah, claro, todas essas maravilhas da ciência só estavam disponíveis a quem podia pagar por elas. Quem não podia, seguia com sua vidinha miserável na Terra dos Plebeus, onde todo tipo de atividade ilícita florescia como nunca (Atwood já havia mostrado antes e de forma magnífica a prosperidade do submundo em O Conto da Aia).

Bem, é pelas recordações de Jimmy que sabemos como ele conheceu seu melhor amigo e toda a trajetória acadêmica de ambos. Desde o início é possível perceber o quanto Crake, que na verdade se chamava Glenn, é genial e obstinado, bem como sua frustração com a espécie humana, que já se insinuava desde cedo, até culminar em seu projeto de vida: os Crakers, ou Filhos de Crake. Nas memórias de Jimmy também está Oryx, a garotinha que os amigos viram pela primeira vez em um filme pornô que explorava pedofilia e cujo olhar capturado pela câmera, de algum modo, jamais saiu da cabeça deles. Quando os três, já adultos, se encontram na vida real, o destino de toda a humanidade já está traçado, e eles têm um papel fundamental nele.

É difícil falar sobre esse livro porque a narrativa é do tipo quebra-cabeça e leva um tempo até as coisas começarem a fazer sentido. Eu iniciei e parei a leitura desse livro duas vezes, e só na terceira tentativa fui até o fim. Tudo bem que isso aconteceu, em parte, porque eu estava sem tempo de ler e muito cansada quando lia de fato, mas mesmo assim achei o início lento, cheio de detalhes que acenavam para uma história interessante, mas a ação mesmo só veio depois que eu já havia completado uns 40% da leitura. Conforme fui encaixando as peças, fui gostando mais da trama e enxergando o terrível cenário que a Atwood apresenta no livro.

Reconhecer problemas tão contemporâneos nesse romance futurista é fácil, e a autora não pega leve ao fazer suas críticas ao capitalismo, que cria as desigualdades sociais, e à cruel lógica de mercado, que faz com que ciência e tecnologia sejam usadas sem escrúpulos e sem ética para beneficiar apenas uma parcela da população, esgotando recursos naturais, extinguindo espécies, utilizando seres vivos de todo tipo como cobaias, criando produtos e alimentos que fazem adoecer para que a indústria farmacêutica possa vender a ilusão de tratamento e cura. Um esquema bastante destrutivo e lucrativo.

Para mim, Crake é o personagem mais interessante porque, apesar de parecer frio e desalmado, percebe como ninguém como o sistema funciona, quais são suas falhas e vulnerabilidades, e usa a própria engrenagem que sustenta o regime para fazê-lo ruir, ainda que, para isso, tenha que eliminar a humanidade do planeta. Na verdade, ele é extremamente perspicaz, pois sabe que os seres humanos é que causam os problemas, com sua ilusão de superioridade e seu orgulho despropositado. Um dos momentos mais marcantes de Crake é quando ele diz para Jimmy que o homem é a única espécie que continua a se reproduzir indiscriminadamente, mesmo quando sabe que não há condições de sobrevivência, que não há nem comida para todos. Isso diz muito sobre os seres que se acham a última bolacha do pacote, não?

Gostei muito do plano mirabolante de Crake (e dos Crakers que ronronam para curar os semelhantes... muito amor!), mas acho que ele tem uma falha: Jimmy. Claro, Crake confiou totalmente no amigo para levar seu projeto de novo mundo adiante, mas sei lá. Acho que sou mais cética que ele e, para mim, se sobrou 1 humano, já deu errado. Mas veremos. “Oryx e Crake” é o primeiro volume de uma trilogia (“O ano do dilúvio” é livro 2, e “MaddAddam” – ainda não traduzido para o português – é o terceiro e último livro da série). Estou bem curiosa para ver como continua essa história.

“A natureza está para os zoológicos assim como Deus está para as igrejas.
– O que quer dizer? – disse Jimmy. Ele não estava prestando muita atenção, estava preocupado com os frangos sem cabeça e os lobocães. Por que ele tinha a sensação de que uma linha fora cruzada, uma barreira fora ultrapassada? Tudo não teria ido longe demais?
– Essas paredes e barras de ferro estão aqui por uma razão – disse Crake. – Não para nos manter do lado de fora, mas para mantê-los do lado de dentro. A humanidade precisa de barreiras, em ambos os casos.
– Para se defender de quê?
– Da Natureza e de Deus.
– Pensei que você não acreditasse em Deus – disse Jimmy.
– Eu também não acredito na Natureza – disse Crake. – Não com N maiúsculo.”

Nota: 4/5

>> Mais uma leitura que faço na companhia da Lulu (a resenha dela está AQUI). Miga, muito obrigada pela discussão incrível e pela paciência enorme para aguentar meus constantes adiamentos. Estou num ritmo lento, mas já quero programar nosso próximo livrinho!

Esta resenha faz parte do Projeto Lendo Margaret Atwood. Veja AQUI a lista de títulos com os links para minhas resenhas já publicadas. Para ver as resenhas que a Lulu preparou especialmente para o projeto, clique AQUI.

2 comentários:

Anônimo disse...

É muito fofo o ato dos Crakers ronronarem para curar os semelhantes (^_^). Acredito que o plano de Crake deu certo... Dá a impressão que a humanidade está quase extinta (faltam os detalhes, rs). A crença de Crake em Jimmy é uma ação (talvez estranha) de confiança em Jimmy ajudar os Crakers nessa adaptação com o mundo.
Mi, nossa discussão foi produtiva, ou seja, ótima!!! Ah, não esquenta; imprevistos das coisas da vida acontecem (^_~).
Beijos!

Michelle disse...

Lulu,
Eu jurava que tinha respondido (mas talvez tenha feito isso só mentalmente...). Foi uma ótima leitura. E uma discussão melhor ainda <3