segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Resenha: Vidas Provisórias


Paulo, no início dos anos 70, é perseguido pela ditadura no Brasil. Depois de ser preso e torturado, é abandonado sem documentos além da fronteira. De lá, ele segue para o Chile, passa pela Argentina e acaba na Suécia, onde aos poucos tenta colocar a vida nos eixos. Barbara, no comecinho dos anos 90, deixa o Brasil rumo aos Estados Unidos, onde se instala como imigrante ilegal. Lá, a adolescente que não fala inglês sobrevive fazendo faxina e bicos de manicure, principalmente para outros brasileiros. Mesmo em períodos diferentes e sem se conhecer, os dois protagonistas têm em comum a terrível sensação de não pertencer a lugar nenhum, como se suas vidas tivessem sido pausadas enquanto eles tentar descobrir o que fazer em seguida.

Começo dizendo que sempre tive quis ler alguma coisa do Edney Silvestre, mas nunca tive a oportunidade. Então, quando vi que uma das opções disponibilizadas pela Editora Intrínseca aos blogs parceiros era “Vidas Provisórias”, não pensei duas vezes. Neste lançamento, o escritor retoma os personagens de seus livros anteriores, mas não é necessário ter lido os outros romances para acompanhá-los na nova obra. Aliás, "Vidas provisórias" é dividido em 2 livros: O Livro de Paulo e o Livro de Barbara e eles se intercalam e se distinguem pelas cores diferentes de página e de tinta (a história de Paulo é contada em folhas amareladas e letras pretas; a narrativa de Barbara é impressa em folhas brancas e letras azuis). Assim, é possível ler todo o livro na ordem em que as histórias aparecem, ora de um personagem, ora de outro, ou acompanhar cada história separadamente. O único capítulo que deve ser deixado para o fim, depois da leitura das duas histórias, é o último do livro, que amarra as duas tramas.

(Clique para ampliar)

O mais interessante, para mim, foi perceber como duas pessoas tão diferentes e que deixam o país por motivos distintos (Paulo vai embora para não ser morto; Barbara o faz em busca melhores oportunidades de vida) partilham do mesmo sentimento de solidão, perda de identidade, estranhamento. Paulo, que deixa amigos, parentes e uma vida no Brasil, não pensa em voltar, não quer saber o que se passa em sua terra natal, quer esquecer de tudo e tentar reconstruir a si mesmo e começar uma nova vida ao lado da esposa que conheceu na Suécia e do filho que acaba de nascer. No entanto, o passado não é algo fácil de apagar, principalmente quando a representação daquilo que você luta para enterrar aparece em carne e osso para te fazer lembrar e, pior, te ameaçar.

Barbara, por sua vez, vai embora do Brasil atrás da promessa de uma vida melhor oferecida pelo namorado que já estava nos EUA, mas, somente ao chegar lá, percebe que as coisas não seriam tão fáceis. A dificuldade com o idioma (que ela julgava saber para se virar e, no fim, não entende), os trabalhos exaustivos e humilhantes, o medo de ser descoberta pela imigração, a falta de alguém para conversar – o único amigo que faz na terra do tio Sam é Sílvio, um dos seus primeiros clientes e uma das raras pessoas que, de fato, a enxergavam; para os outros, era apenas uma empregada, que devia somente cumprir sua função e permanecer invisível. Ela, mesmo sendo mais jovem que Paulo, já não tem sonhos ou perspectivas e a família que deixou para trás e a quem queria ajudar aos poucos deixa de ter importância, o laço se desfaz com o tempo.

Uma característica marcante na escrita do Edney Silvestre é a base de fatos históricos que sinalizam as mudanças ocorridas no Brasil e no restante do mundo nas décadas cobertas pelas tramas. Fatos como a ditadura, o fim da União Soviética, os resultados catastróficos do Plano Collor, o escândalo sexual de Bill Clinton, a queda das torres gêmeas ajudam o leitor a se situar nos recortes de tempo e, combinados habilmente com experiências pessoais do autor, seu conhecimento de jornalista e seu poder de criação, dão veracidade à história. Para quem não vivenciou esses períodos, para os que querem saber mais a respeito deles ou para aqueles que não têm boa memória, recomendo o hotsite do livro, que traz a linha cronológica de eventos históricos das narrativas de Paulo e Barbara. É bem bacana.

Particularmente, gostei mais da história de Barbara. Talvez porque eu também tenha sido adolescente nos anos 90 e tenha vivido o período retratado, talvez porque seu desalento no exterior tenha parecido mais tocante para mim. Não sei. A empatia que senti por ela foi mais forte.

“Vidas Provisórias” é um livro triste, pois as histórias dos personagens são tristes. É um trabalho muito bem escrito e envolvente, de leitura fluida. No entanto, às vezes achei as frases em outro idioma excessivas, principalmente na história do Paulo. Entendo que o personagem tenha passado por vários países e que a mistura de línguas e o estranhamento causado por isso reforcem a sensação de não-pertencimento do protagonista. Obviamente, foi um recurso usado intencionalmente e tem um propósito. Mesmo assim, pode dificultar a vida de leitores sem um entendimento razoável de inglês, já que nem toda frase é traduzida e nem sempre é possível ignorar tais falas.

Tirando esse pequeno detalhe que citei acima, o livro é irrepreensível. E um ótimo exemplo de caso em que o livro físico dá de 10 no e-book. Páginas de duas cores, impressão colorida, bordas das páginas coloridas... nada no mercado de livro eletrônico é páreo para isso atualmente. Todavia, a tecnologia não é deixada de lado. Juntamente com o lançamento de “Vidas Provisórias” foi disponibilizado gratuitamente em várias lojas virtuais o e-book “Aqueles Tempos”, no qual Edney Silvestre fala dos bastidores da trama, mostra um pouco de sua pesquisa para criar o livro e algumas fotos. Bem interessante. Aqui tem uma lista de livrarias que disponibilizam o livro.



Histórias comoventes de gente que deixou seu país de origem para se transformar desconhecidos anônimos e sem pátria. Recomendo!

"Ficava no quarto andar de um prédio de tijolos vermelhos, sem elevador, ao sul de Manhattan, numa rua estreita e curta, sem uma árvore sequer, perdida entre a Houston e a Canal, próxima ao túnel Holland. Ela se esqueceu do nome da rua. Nunca se preocupou em memorizá-lo. Não acha necessário: se vai uma vez, sempre achará o caminho. Para que decorar nomes e números de ruas, avenidas, linhas de trens ou estações de metrô, se mais dia, menos dia, vai acabar indo embora? Esta é uma vida provisória, ela acredita. Tem de ser uma vida provisória, precisa acreditar."




Este livro foi lido como parte da parceira com a Intrínseca.

6 comentários:

Sarah disse...

Eu achei a sinopse bem legal, e a ideia de intercalar as histórias usando o recurso das cores é bem bacana. Tenho curiosidade em ler algo do Edney Silvestre, de repente este será o primeiro!
bjos

schrotz disse...

Eu já sou meio apaixonada por esse livro só pela capa, o que é idiota, mas é verdade. Ler a sua resenha fez com que eu pensasse muito sobre o assunto, sabe, porque talvez eu nunca viesse a ler esse livro, só me interessasse pela capa, mas essa resenha me deixou curiosa. Muito! Eu acho que fico curiosa com todas as suas resenhas, pra ser sincera, hahaha. Só não fico mais arrependida de não ter comprado esse livro no domingo porque 1) comprei um que conheci aqui mesmo, hahahaha e 2) ganhei o marca página desse livro, então vou estar sempre me lembrando que eu devo ler!
Boa semana, Michelle!
http://literallypitseleh.blogspot.com.br

Tamara Costa disse...

Gostei muito da história, me interessou. Eu sempre gosto de ler sobre pessoas que mudaram de país (porque nunca viajo), mas li pouca coisa relacionada. Esse livro parece mostrar o lado triste de quem muda de país e é bom saber como é a experiência de quem faz isso.

Michelle disse...

Sarah,
Eu também achei ótima a ideia de diferenciar as histórias pelas cores. Torce para ganhar o sorteio (mas se não ganhar, te empresto o meu, viu?)

Schrotz,
Eu te entendo. A capa e todo o projeto gráfico são importantes também, pois estão ligados ao estímulo visual. Que bom que gostou da resenha. E agora fiquei curiosa... qual livro você comprou?

Tamara,
Conhecer novos lugar é bem bacana, mas, no caso dos protagonistas, não foi uma viagem de lazer. Se sentir um nada em terra estrangeira deve ser bem desolador.

Rafael Fernandes disse...

Só fiquei tentado pelo que tu falou da arte do livro, o tema já é bastante interessante e ainda tu joga isso, acho então que vou adorar... Espero gostar.

Michelle disse...

Rafael,
A história é ótima e a arte valorizou muito a escrita. Espero que goste ;)