O LIVRO (NAKED LUNCH / ALMOÇO NU)
“Um
sentinela fardado com um uniforme de pele humana, casaco negro e lustroso com
botões de dentes amarelos e cariados, camisa elástica de reluzente morenice
indiana, calças largas de bronzeado nórdico adolescente, sandálias feitas com
as solas dos pés cheias de calos de um jovem agricultor malaio, um xale
cinza-pardo envolto no pescoço e enfiado na camisa. (Cinza-pardo seria o tom
obtido se fosse possível espalhar cinzas sob uma pele morena. É por vezes
encontrado em mestiços de negro e branco; quando a mescla não é muito
bem-sucedida, as cores separam-se como óleo e água...).”
O
trecho acima ilustra um pouco da atmosfera de “Almoço Nu” e as dificuldades que encontrei durante a leitura: um
universo muito peculiar, que mistura lugares reais com imaginação, delírio,
efeitos de “viagens” causadas pelas drogas; uma linguagem que ora soava poética
como no excerto em questão, ora agredia pelas palavras de baixo calão, pela
crueza das cenas descritas, pela violência, pela escatologia. Como em um
pesadelo em que ficamos aflitos por não conseguirmos acordar ou identificar a
realidade, foi assim que me senti ao ler esse livro.
“Entender inteiramente as nuances do
universo de ‘Almoço Nu’ parece tão improvável quanto compreender cada detalhe
do mundo que nos rodeia”, já informava a contracapa. Sem dúvida. Ter uma
compreensão plena da história nunca foi meu objetivo. Sabia que encontraria um
texto fragmentado e altamente experimental, mesmo assim não consegui mergulhar
de cabeça na história e me entregar ao seu ritmo alucinante. Eu, declaradamente
uma pessoa de raciocínio lógico e linear, não fui capaz de aproveitar a
leitura. Embora eu reconheça a genialidade dessa escrita única e o registro do
submundo pelos olhos de uma pessoa que realmente fez parte desse ambiente, achei
a leitura extremamente confusa e cansativa.
Eu
daria apenas 2 estrelinhas para o livro, não fossem pelos adendos do autor e
anexos dos editores. O depoimento de Burroughs,
que se livrou das drogas aos 45 anos tendo como sequelas um pequeno problema no
fígado, flacidez e envelhecimento precoce, é muito interessante. Ele fala um
pouco sobre as diferentes classes de entorpecentes e seus efeitos e aborda um
assunto delicado e mais atual que nunca: as políticas públicas para lidar com
viciados.
Embora
o livro tenha sido escrito há décadas, os problemas levantados pelo autor ainda
são os mesmos, assim como a abordagem obviamente falha. Burroughs critica sem
dó o posicionamento hipócrita e moralista dos governos e apresenta um ponto de
vista que vai contra tudo o que tem sido martelado insistentemente em nossos
ouvidos até agora: não precisamos eliminar os chefões do tráfico para acabar
com ele; o elo mais importante nessa cadeia são os dependentes. Recolha os
viciados e forneça a eles drogas controladas e o resto do esquema enfraquece.
Sinceramente, tenho minhas dúvidas sobre essa perspectiva, mas é algo a se
pensar.
Nos
anexos dos editores, informações sobre o processo de criação do livro, que
demorou 9 anos para ser escrito e foi editado e reeditado diversas vezes, pelo
autor e por seus amigos, Allen Ginsberg
e Jack Kerouac. Também há sobras, textos que ficaram de fora da edição final.
Apesar
de não ter sido uma leitura agradável, foi uma experiência válida. Recomendo
para fãs de literatura beat e
curiosos em geral.
E
quem melhor que Cronenberg para traduzir em imagens histórias surreais e
bizarras, não é mesmo? Imagino claramente o efeito que o livro deve ter tido
sobre o cineasta. Deve ter sido como encontrar sua alma gêmea dedicada à
literatura... hahaha.
Mas
vamos ao filme... É a história de Bill (Peter Weller), um exterminador de
insetos aspirante a escritor. Ele é casado com Joan (Judy Davis),
viciada em pó inseticida. Como o produto era controlado, um dia os chefes de
Bill notam que ele estava gastando muito e tomam seu equipamento. Bill então recebe
a visita de policiais e, durante a investigação, o dedetizador se vê diante de
uma barata gigante, que revela sua condição de agente infiltrado da Interzone e um plano de assassinato da
esposa. Depois disso, as insanidades começam a ganhar força.
A
adaptação não segue à risca o livro, já que isso seria impossível. Só de alguém
ter pensado em levar para as telas esse livro já é doideira o bastante. De
alguma forma, o filme parece ter uma narrativa mais linear e compreensível. Não
tenho muito o que falar da trama. É só se deixar levar e acompanhar as
alucinações de Bill.
O
visual é meio noir, o que me agradou bastante. Os seres alienígenas (?) me lembraram o personagem que se transforma
em mosca no outro filme do Cronenberg. Ah, também tem a carne negra de
centopeias gigantes aquáticas brasileiras (é nóis!!!), que é transformada em pó
e usada como remédio para vencer a dependência do pó inseticida. Mas minha
bizarrice preferida são as máquinas de escrever que se transformam em insetos.
Muito legais!
Recomendo
para fãs de Cronenberg e para aqueles que querem ver algo totalmente inusitado.
Veredicto: Leia o livro e veja o filme se estiver procurando uma experiência diferente ou se apreciar um estilo literário/cinematográfico bem específico.
[Canadá]
[Canadá]
4 comentários:
Oi Michelle,
Tenho muita vontade de ler esse livro. Mas sei que é uma leitura difícil. Lembrei do conselho da Sam, em "As vantagens...", seguir o fluxo da narrativa, sem se prender a muitos significados. Também não sei se vou gostar, mas ano que vem pretendo ler.
beijo grande,
Maira
Eu assisti o filme faz um bom tempo e achei a maior loucura HAHA Mas gostei demais xD Até comprei o dvd para rever (havia visto na Cultura) mas o bendito disco veio riscado e sempre trava no início ;\
O livro eu pretendo ler quando me dedicar as leituras do Charlie - já que esse ano não conseguir ir adiante com o Charlie's Booklist -ainda espero conseguir nos próximos anos ler os livros que o Charlie leu ;)
Beigos!
Maira,
Esse conselho é ótimo, porque é a única forma de ler esse livro. Mesmo assim, foi bem difícil. Uma experiência válida, mas que não pretendo repetir...rs
Maura,
O filme é viagem pura! Gostei muito.
Ainda não tive a oportunidade de ler o livro, mas já conheço alguma coisa das biografia e bibliografia do Burroughs. O fato de ele ter decidido se tornar um escritor ~após~ a morte da esposa eu sinto que é justamente o porquê de o livro ser assim tão confuso quanto você descreveu. Afinal, ele havia matado uma mulher, então mergulhar em delírios herméticos que complicam o exame racional dos fatos eles mesmos amalgamados em culpa e tragédia seria uma forma de fugir do embuste judicial e também expurgar toda a mágoa sofrida. O mais genial de Burroughs, enfim, é essa qualidade auto-biográfica da obra: o homem por ele mesmo.
Obrigado pelo seu post!
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