LIVRO: O HOMEM DUPLICADO
Tertuliano Máximo Afonso trabalha como professor de história há anos em uma escola secundária. Vive só e num estado de indiferença constante. Até que um dia, um colega de trabalho, notando seu desânimo, lhe sugere assistir a uma comédia leve para relaxar. Meio a contragosto, Tertuliano aceita a sugestão e é então que sua vida vira de cabeça para baixo: no filme, ele vê um ator que era idêntico a si mesmo. Teria ele enxergado direito? Será que o homem da tela era tão parecido assim? Intrigado, Tertuliano resolve investigar.
Como
descobre um tempo depois, Antônio Claro,
que usa a alcunha de Daniel Santa Clara
em seus trabalhos como ator, é muito mais que parecido: é um duplo,
milimetricamente idêntico em tudo, até nas marcas de nascença e cicatrizes. A
revelação se mostra extremamente perturbadora para ambos e o protagonista se
angustia diante da dúvida: e se o outro for o “original”?
À
primeira vista, “O Homem Duplicado”
parece ser uma história de ficção científica. No entanto, conforme a leitura
avança, fica claro que Saramago genialmente criou uma trama com personagens
espelhados para falar a dualidade de cada pessoa e discutir a construção da
identidade.
Tertuliano
era um cara apático, que se casou e divorciou sem saber o motivo, incapaz de
tomar decisões, que seguia uma rotina entediante por pura preguiça de mudar.
Somente quando toma conhecimento da existência do duplo é que começa a viver de
fato. Sua obsessão por saber quem era o outro faz com que acabe conhecendo
melhor a si mesmo. Sua própria identidade é criada a partir do outro.
É
muito interessante que, no início, Tertuliano persiga o outro, se disfarce para
espiá-lo, queira desesperadamente encontrar seu duplo para resolver a questão;
ao longo da história, os papéis de invertem: o outro, que queria manter
distância a qualquer custo, fica fascinado com a descoberta e passa a se
disfarçar e a perseguir o perseguidor. O ator coadjuvante, que vivia de
imitações, passa a assumir o papel principal em sua própria vida e nos deixa em
dúvida de quem é o duplicado afinal. Também adorei as partes em que Tertuliano
conversa com o senso comum.
Em
uma história cheia de ação e reflexões, Saramago nos convida a pensar em nosso
papel no mundo, nas aparências, em como nos vemos e como somos enxergados, em
como dependemos de outras pessoas para nos tornarmos completos. Mais uma obra
do autor que entrou para minha lista de favoritos.
“Quando
pela primeira vez olhou a sua nova fisionomia sentiu um fortíssimo impacto
interior, aquela ínfima e insistente palpitação nervosa do plexo solar que tão
bem conhece, porém, o choque não tinha sido o resultado, simplesmente, de se
ver distinto do que era antes, mas sim, e isso é muito mais interessante se
tivermos em conta a peculiar situação em que tem vivido nos últimos tempos, uma
consciência também distinta de si mesmo, como se, finalmente, tivesse acabado
de encontra-se com a sua própria e autêntica identidade. Era como se, por
aparecer diferente, se tivesse tornado mais ele mesmo”.
Divertido,
intrigante, dinâmico. Pode furar a fila de leituras com esse livro. Sério.
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FILME: O HOMEM DUPLICADO
Embora
o livro tenha sido o primeiro que li em junho, decidi esperar pelo filme, para
montar um post comparativo. Se o final do livro já tinha me deixado com
neurônios fervendo, o filme conseguiu fundir de vez meu cérebro.
“O
caos é uma ordem por decifrar”. A frase, retirada do livro, aparece na
tela nos segundos iniciais do filme e dá dica do que esperar: muitas dúvidas e
coisas inexplicáveis (pelo menos em um primeiro momento). Na adaptação,
Tertuliano virou Adam e, tal como na história do Saramago, descobre a
existência do seu duplo e sai investigando por pura curiosidade. Já a sua
contraparte, Anthony, ganha contornos mais agressivos do que na obra do
escritor lusitano, explicando bem o título americano de "Enemy".
O
fato é que, embora seja uma boa adaptação, o tom do filme é bem diferente do
livro. Enquanto no texto tínhamos as observações críticas e espirituosas do
Saramago, com algumas situações engraçadas, o filme abraça o lado sombrio e
torna a dualidade de Adam/Anthony uma luta entre as porções boa e má que cada
pessoa traz dentro de si. As diferenças de personalidade já faziam parte da história,
mas o filme acentua bastante essa característica. Jake Gyllenhaal, aliás,
faz um trabalho incrível ao compor os dois personagens fisicamente idênticos,
mas completamente opostos quanto ao comportamento: o professor simples,
metódico, inseguro, que tem ombros caídos, anda arrastando os pés e dirige uma
lata velha; contra o ator insensível, confiante, metido a conquistador, que
adora se admirar no espelho e pilotar sua moto potente.
O
filme tem um visual escuro e uma trilha sonora presente o tempo todo,
colaborando para a tensão constante e crescente. A dualidade pode ser observada em
cada cena, nos personagens, em suas casas, na paisagem. As pistas para entender o filme estão espalhadas em cada tomada. Em uma das cenas cruciais, mostrada logo no comecinho, Adam está em aula e explica aos alunos sobre formas de controle e perda
de identidade, cita Hegel e Karl Max e a teoria de que todos os grandes eventos
acontecem 2 vezes, sendo o segundo uma farsa. Em seguida, vemos uma pequena
cena do professor em casa e a cena da aula é repetida. Gostei muito do uso desse recurso para mostrar que a vida dele era
uma repetição, enquanto ele trata de controle em classe, vai aos poucos
perdendo a direção de sua própria vida, o seu duplo (segundo evento) se
aproxima. Achei bem interessante.
E o
que dizer da aranha? Aparecendo pela primeira vez logo no começo do filme, como
um pesadelo, sua presença se dá durante toda trama, pairando, gigantesca, sobre
a cidade, em teias estilizadas nas fiações e nas rachaduras do vidro, na
perturbadora cena final. O que significa? Suposições existem aos montes, mas é
algo que não se pode determinar com certeza. Eu, nas minhas buscas frenéticas
feitas logo que terminei de ver o filme, descobri várias teorias e estou
tentando montar a minha própria. Gosto muito da simbologia da aranha como a
tecedora do destino e responsável pela ordem cósmica, ao mesmo tempo em que remete
ao perigo (já que é ligada às mulheres e seu poder de sedução).
Enfim...
é daquele tipo de filme a que se pode assistir várias vezes e, a cada sessão,
encontrar novos elementos; daqueles que geram assunto para mais de horas de
debate; do tipo que jamais compreenderemos totalmente e que, por ser tão
caótico quanto a própria vida, nunca deixará de ser intrigante.
Para quem também ficou cheio de caraminholas e está tentando decifrar o caos, recomendo esse texto e também esse aqui.
Sensacional. Para ver e rever inúmeras vezes.
Trailer legendado:
5 comentários:
Mi, sua resenha me deixou com muita vontade de fazer essa leitura e ver o filme. Muita mesmo! Ainda não tenho esse do Saramago, vou providenciar urgentemente! =D
Beijinhos!
ótimos olhares sobre o livro e sobre o filme!
como disse no facebook, o livro é um dos meus favoritos do Saramago. acredito que, embora o filme seja bom e o diretor tenha conseguido reproduzir a atmosfera do livro (que li há anos, mas lembro bem de senti-lo com as cores do filme, por exemplo), ele fica muito aquém da obra literária. não sei como aconteceu com outras pessoas que não leram o livro, mas vi o filme com meu namorado, que não o leu, e ele ficou meio perdido. eu também senti que faltou alguma coisa ali.
Ah MiG e eu achava que o livro iria ajudar a entender melhor o filme, mas pelo jeito ajuda a criar mais questionamentos - o que é bom também. A psicanálise tem um conceito que eu acabei enxergando nesses pontos que você citou e que aparece muito na literatura, que é a existência de algo muito familiar no que estranhamos como oposto a nós mesmos. Então em alguns momentos eu via o Anthony como uma fantasia do Adam mesmo e não como algo real, mas em outros momentos eu ficava na dúvida (essa parte de Hegel e Marx me deixou encucada por várias semanas hahahaha,e quanto mais eu pensava em fatos históricos, mais eu via que eles tinham razão). A aranha no final eu vi como algo mais ligado à metamorfose do Kafka mesmo, não tinha parado pra pensar na simbologia, mas agora que você falou acho que tem muito a ver!
Com certeza vou rever o filme depois de ler o livro, acho que vale muito a pena! E depois eu volto pra ler a parte do livro (só li a do filme mesmo).
Beijo enorme,
Tati
Gostei demais da resenha. Esse livro já estava na minha lista há bastante tempo. Vou ler o mais breve possível e assistir ao filme. Beijo!
Estou louca para fazer essa dobradinha!
Por isso não vou ler ainda a resenha.
Já tenho o livro.
Depois te conto!
;)
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