LIVRO: A QUEDA DA CASA DE USHER (CONTO)
“Não
sei dizer como foi – mas, ao primeiro relance do edifício, uma sensação de
insuportável desespero invadiu meu espírito. Digo insuportável; pois a
impressão não era atenuada por nada desse sentimento parcial de prazer, pois
que poético, com que a mente normalmente recebe até mesmo as imagens mais
austeras de desolação ou dissabor. Contemplei a cena diante de mim – a mera
casa, e os simples aspectos panorâmicos da propriedade – as paredes nuas – as
janelas vagas semelhantes a olhos – o capim esparso e espesso – uns poucos
troncos esbranquiçados de árvores fenecidas – com uma depressão de alma tão
absoluta que não a posso comparar mais adequadamente com nenhuma outra sensação
terrena senão com o estado pós-onírico daquele que se entregou às dissipações do
ópio – a amarga recaída na vida cotidiana – o hediondo cair do véu. Havia uma
gelidez, uma prostração, uma repulsa no coração – uma irremediável consternação
do pensamento que estímulo algum da imaginação podia instigar ao que quer que
fosse de sublime. O que era isso – parei para pensar – o que era isso que me
debilitava ao contemplar a Casa de Usher?”
Eu
já havia lido o conto em 2012, mas, como é um texto curto, reli para poder
relembrar e comparar com o filme. Nessa que é uma das mais famosas histórias do
Poe, o narrador sem nome recebe uma carta de um amigo de infância com quem não
tem contato há muito tempo. Na missiva, Roderick Usher, o tal amigo, conta que
está muito doente e que gostaria que o outro fosse visitá-lo. Notando o tom de
súplica do remetente, o narrador aceita o convite e vai até a casa dos Usher.
Antes
mesmo de entrar na residência, o narrador se sente incomodado com o tom
desolador da paisagem que circunda a propriedade, com a aura de abandono e
decrepitude da construção e, pior, com uma sensação estranha de que a casa
estava viva e o estava observando. Como se constata durante a leitura, a casa
tem mesmo um poder misterioso e exerce forte influência sobre os moradores e os
visitantes – ela é o verdadeiro protagonista de história.
Poe descreve
ricamente a casa, sua mobília e seus adornos e coloca o leitor no meio da ação.
É possível ouvir os ruídos da mansão e sentir sua movimentação. O mesmo cuidado
se aplica à narração das características de Usher e de sua peculiar doença:
“agudez mórbida dos sentidos”, que o obrigava a ingerir apenas alimentos
insípidos, usar roupas de textura leve, evitar odores fortes, viver na penumbra
e ouvir apenas sons delicados.
Durante
a breve estadia do narrador na casa, ele percebe que não sabia quase nada sobre
o amigo, e nota que ele tinha uma irmã gêmea, tão ou mais sensível que o
próprio Usher, e que vem a falecer enquanto o hóspede ainda estava lá. Então, a
melancolia que já reinava no local ganha nova dimensão, o desespero dos que se
encontravam na propriedade aumenta consideravelmente e o narrador começa a
sofrer a maligna influência da casa, passando a não saber mais o que é real e o
que é imaginação. E tudo isso vai se misturando até o incrível desfecho.
Um
clássico absoluto que envolve totalmente o leitor e que exemplifica
perfeitamente porque Poe é mestre na arte do horror.
FILME: A QUEDA DA CASA DE USHER
Como
já entrega a sinopse do DVD, a adaptação desse clássico do Poe pelas mãos do
diretor Roger Corman é bem livre. Nesta versão da história, o narrador
atende por Philip Winthrop (Mark Damon) e vai até a casa dos
Usher para buscar Madeline (Myrna Fahey), sua noiva e irmã de Roderick Usher (Vincent Price). Ao chegar lá, se surpreende com o estado
lamentável da propriedade e tem que enfrentar o irmão possessivo da amada, que
nem sabia do noivado.
O
foco do filme muda radicalmente em relação ao conto, deixando a casa como um
mero objeto de uma maldição de família que Usher faz questão de respeitar (na
verdade, eu achei que ele usava a história da maldição como desculpa para
manter o controle sobre a irmã e que sentia um certo prazer sádico com isso).
Com certeza a formação de um par romântico foi importante para levar a história
às telas.
As
mudanças na trama não me incomodaram tanto, já que eu sabia desde o início que
era uma versão “livremente inspirada” no livro. Infelizmente, não posso dizer o
mesmo do visual do filme. Achei que os cenários eram excessivamente coloridos,
que as roupas do Usher eram pesadas de mais para quem dizia ter
hipersensibilidade cutânea e que Madeline tinha um aspecto de quem esbanja
saúde. Talvez isso não incomode outras pessoas, mas passou longe do visual
sombrio que imaginei durante a leitura.
Na
verdade, o livreto que vem o DVD inclui uma pequena explicação sobre o uso das
cores, mas não me agradou, de qualquer forma. Por outro lado, se tem uma coisa
que me impressionou nessa adaptação são as pinturas Usher. Essas conseguiram
ser muito mais assustadoras do que as que fui capaz de criar mentalmente... rs
Indico
para quem gosta de histórias de terror e para a legião de fãs do Vincent Price.
Clique AQUI para ver o trailer de época legendado.
Já a versão de 1928
do filme, produzida pelo diretor polonês Jean Epstein, incluída como extra no
DVD, atendeu muito melhor às minhas expectativas. Embora o texto de Poe também
tenha sofrido algumas alterações significativas, o visual soturno favorecido
pelas imagens em preto e branco e as distorções típicas da influência do
expressionismo alemão me deixaram muito mais satisfeita.
Nessa
adaptação, Madeline (Marguerite Gance) é a adoentada esposa de Roderick Usher (Jean Debucourt),
que, desesperado, escreve ao amigo (Charles Lamy) e o convida para
passar uns tempos com o casal. O amigo vai até lá, mas, estranhamente, Usher o
manda embora. Além disso, Usher é obcecado por terminar de pintar um quadro da
esposa. Como um "Dorian Gray" ao contrário, quanto mais o quadro ganha
vida, mais Madeline perece.
Mesmo
com as liberdades tomadas, gostei do filme. Acho essas produções antiquíssimas
sensacionais e adoro observar as soluções usadas em uma época em que os parcos
recursos visuais tinham que ser compensados com extremas doses de criatividade.
Nesse filme, por exemplo, foi muito bacana ver como os macabros sons produzidos
pela casa foram traduzidos em um filme mudo. A ambiguidade e confusão entre
sonho e realidade do conto estão bem presentes nessa versão. Ah, sim... o
roteiro foi coescrito com o surrealista Luis Buñuel. Já deu para ter uma ideia
do que esperar do filme, né?
Recomendado
para fãs de terror clássico do início do século XX.
Clique AQUI para assistir ao filme no YouTube!
Este post faz parte do Projeto Grandes Livros no Cinema. Para ver a lista de títulos com os links das resenhas feitas, clique AQUI.
3 comentários:
Oie Mi
Poe é com certeza o mestre no gênero.
Não li essa obra ainda, pois do autor tenho apenas 1 livro, mas já fiquei interessada por haver uma adaptação. E ainda por cima ser da década de 60. Apesar do filme não ter levado uma classificação boa, fiquei muito curiosa para assistir.
E essa última foto do filme de 1928 me deu medo.
bjos
www.mybooklit.com
Oi, Mi!
No começo do ano tentei ver o filme 1960 três vezes e nas três, acabei cochilando >< Na quarta tentativa, consegui vê-lo. O achei bonzinho, mas em comparação ao conto que é sensacional, ele é "colorido demais".
As pinturas também me assustararam LoL Já que a Casa de Usher, ah, a casa, que me mete medo desde a primeira vez que li sobre ela (em As Crônicas Marcianas), perdeu todo o seu poder sobre mim.
Nossa, concordo, Mi, "(na verdade, eu achei que ele usava a história da maldição como desculpa para manter o controle sobre a irmã e que sentia um certo prazer sádico com isso). Com certeza a formação de um par romântico foi importante para levar a história às telas."
Ah, ainda não assisti a versão de 1928. Hm, fiquei com vontade de assistir!
Beijos!
Jacque,
O filme em si não é ruim, mas eu já tinha formado toda a história na minha cabeça. As descrições do Poe são tão boas que eu já tinha construído um filme mentalmente, só que o que vi na tela foi totalmente oposto à minha imaginação. O filme de 28 tem mais a ver com o que eu esperava.
Maura,
Você me entende. Essa cor toda não combinou com o clima do livro. Investe na versão de 1928 que acho que você vai curtir.
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