O narrador de “Bom dia camaradas” é um garoto angolano de Luanda que, em meio a brincadeiras e aulas, nos apresenta o panorama do país nos anos 90. Ao optar por não batizar seu protagonista e não datar precisamente os fatos, Ondjaki amplia consideravelmente a identificação do leitor com os acontecimentos daquele país distante, mas que guarda mais semelhanças com o nosso do que podemos imaginar à primeira vista.
O
nome do protagonista não é mencionado no livro, mas há dicas de quem serviu de
inspiração: em determinado momento, o menino conversa com a tia sobre o herói
de seus textos, chamado Ndalu (que,
por acaso, é o nome verdadeiro do autor). Logo, podemos inferir que as memórias
do narrador são lembranças ficcionais da infância do escritor. O período exato
da ação também não é informado, mas pelos acontecimentos históricos retratados
como pano de fundo (professores cubanos voltando para casa e anúncio da criação
de outros partidos políticos) é possível definir que a trama se desenrola nos anos 90.
Para
quem não conhece nada sobre a história de Angola, um resumo rápido: foi colônia
de Portugal até 1975, quando se liberta. No entanto, de liberdade o país não vê
nada, pois entra em uma violenta guerra civil, durante a qual três movimentos
libertários disputam o poder: um com o apoio dos capitalistas dos Estados
Unidos, um com o suporte das forças armadas do apartheid da África do Sul, e um
sob o controle dos socialistas (Cuba e ex-União Soviética). A história se passa
no comecinho dos anos 90, quando o governo angolano publica uma lei que
autoriza a criação de novos partidos políticos e os cubanos deixam o país (é
exatamente esse momento conturbado que o livro reflete).
Enfim...
o protagonista, como qualquer criança, fala das brincadeiras com a turma, da
bagunça com os colegas de escola, do cotidiano familiar. Pelos seus olhos
infantis, vemos o quanto o país está desestabilizado: as aulas são
frequentemente interrompidas porque alunos e professores fogem em disparada
quando veem um carro se aproximando – o grupo Caixão Vazio, que aterrorizava as escolas, pois tinha a fama de
estuprar mulheres, roubar crianças e matar professores. Outros indícios desses
tempos difíceis surgem quando a tia portuguesa do narrador, que está passando
uns dias em sua casa, quase leva um tiro por tirar fotografias (algo proibido
naquela época), ao não entender porque deveria sair do carro e ficar com as
mãos à vista quando a comitiva do presidente se aproxima deles na rua, por
querer nadar em um pedaço de mar que pertencia ao exército soviético.
Para
ela, estrangeira e residente em um país livre e democrático, tais procedimentos
eram chocantes e absurdos, enquanto para o jovem sobrinho (e também para
aqueles que eram obrigados a viver naquela situação) tudo era normal e lógico –
o estranho era saber que em Portugal não havia cartão de racionamento e que o
presidente ia comprar jornal a pé aos domingos.
Uma
característica que difere os personagens principais de “Bom dia camaradas” daqueles de outros livros africanos que já li é
o fato de todos serem representantes da classe média. Em geral, o que se vê (e
se pensa) quando o cenário é o continente africano (com exceção da África do
Sul) diz respeito a pessoas pobres, muitas vezes pertencentes a tribos e
vilarejos longínquos. Aqui, este não é o caso: as crianças moram em casas boas
e confortáveis, as famílias têm empregados, o próprio protagonista às vezes
chega à escola no carro oficial (o pai é funcionário do governo), os amigos têm
relógios caros. A gente simples é retratada pelos empregados (que moram longe,
mas vão trabalhar a pé) e pelos professores cubanos (que vivem em apartamentos
mofados e servem chá que é pura água e açúcar).
Este
é o segundo livro que leio do Ondjaki (o primeiro foi “Os da minha rua” e tem resenha AQUI) e mais uma vez ele me encantou pela forma singela e engraçada
como retrata a infância, a rotina e até mesmo a violência. Muitos
personagens de “Bom dia camaradas” são os mesmos do outro livro, então tive a
impressão de reencontrar velhos amigos. Mas este, ao contrário do anterior, tem
uma estrutura linear e cronológica. A oralidade marca presença novamente (assim
como o glossário nas últimas páginas), dando um sabor especial à leitura.
"Pela janela enorme entrava luz, entrava o som dos passarinhos, entrava o som da água a pingar no tanque, entrava o cheiro da manhã, entrava o barulho das botas dos guardas da casa ao lado, entrava o grito do gato porque ele ia lutar com outro gato, entrava o barulho da despensa a ser aberta pela minha mãe, entrava o som de uma buzina, entrava uma mosca gorda, entrava uma libélula que nós chamávamos de helibélula, entrava o barulho do gato que depois da luta saltava pro telheiro de zinco, entrava o som do guarda a pousar a aká porque ia se deitar, entravam assobios, entrava muita luz mas, acima de tudo, entrava o cheiro do abacateiro, o cheiro do abacateiro que estava a acordar".
Uma
leitura rápida e agradável, apesar da realidade dura que nos apresenta. Mais
que recomendado!
Este post faz parte do Desafio Literário Skoob 2015 - Mês de Maio: Livros originalmente escritos em português. Para ver a apresentação do desafio, minha lista de obras selecionadas e outros posts do DLSkoob2015, clique AQUI.
3 comentários:
Os escritores africanos chegaram com tudo, né? Eu realmente sabia muito pouco sobre Angola, então sua contextualização foi providencial ;)
Beijo!
Oie Mi
gosto de livros que retratam a infância (aprendi a gostar depois da overdose de Modiano), e nunca li nada ambientado na Angola. Anotei aqui na minha lista de querências.
bjos
www.mybooklit.com
Adoro o Ondjaki. Não sabia que "Bom dia, camaradas" tem os mesmos personagens de "Os da minha rua" (e consequentemente, de "AvóDezanove"), agora fiquei com mais vontade de ler :)
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