sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Resenha: Um Amor Incômodo


É o dia de seu aniversário e Delia aguarda a chegada da mãe. Estranhamente, o dia chega ao fim e nem sinal dela. À noite, sua mãe, Amalia, faz três ligações breves para ela – nas três parece alterada, diz coisas sem sentido e as chamadas se encerram abruptamente. No entanto, uma coisa é certa: aquilo não era normal. Preocupada, Delia informa a polícia e então o corpo de sua mãe é encontrado no mar. Um detalhe peculiar chama a atenção: ela vestia apenas um sutiã de uma marca cara que nunca usara na vida. Voltando a contragosto a Nápoles, sua cidade natal, para o enterro da mãe, Delia refaz caminhos que não lhe trazem lembranças agradáveis e consegue, depois de anos, entender acontecimentos de sua infância e como eles afetaram sua relação com a mãe.

Eu já havia lido a quadrilogia napolitana da Ferrante e adorado, mas ‘Um amor incômodo’ foi meu primeiro livro único da autora e o achei ainda mais impactante do que a série: se na saga de Lila e Lenu fui sendo derrubada pouco a pouco, a história de Delia e Amalia me nocauteou com um soco direto no queixo. Uma diferença importante e que se nota quase que imediatamente é a estrutura narrativa: enquanto na série acompanhamos os acontecimentos de forma linear, bem ao estilo novelão, no livro único a história é toda fragmentada, avança e recua no tempo, mistura fatos e memórias, arrasta o leitor para dentro da mente fervilhante e confusa da protagonista – e foi exatamente esse caos narrativo que me ganhou.

Desde o início fica claro que mãe e filha não têm uma relação harmoniosa (e daí parecia vir o título do livro), mas conforme Delia percorre as ruas do antigo bairro em que cresceu e confronta as figuras masculinas de sua infância (o pai, o tio materno e Caserta, amigo do pai e do tio que estava sempre presente) vai percebendo que o registro mental que tem de alguns acontecimentos talvez não represente de fato o que aconteceu. Seja porque na época ela era pequena demais para compreender coisas que presenciou ou escutou, seja porque seu comportamento apenas reproduzia valores dos adultos, seja porque crianças fantasiam, seja porque viveu um trauma, seja porque a memória realmente nos prega peças às vezes... Delia só depois de perder a mãe se dá conta de que não a conhecia e do quanto se parece com a genitora que tanto detestava.

De resto, Ferrante continua explorando temas que marcam sua obra: as relações conflituosas entre mãe e filha, o papel da mulher em uma sociedade em que o assédio sexual é institucionalizado, a violência nas ruas e dentro de casa que é naturalizada e acaba por fazer com que algumas pessoas queiram se afastar de seus locais de origem para nunca mais voltar, memória, fato e interpretação de acontecimentos. Não sei por quanto tempo é possível continuar explorando sempre as mesmas questões dentro do mesmo universo, mas, para mim, tem funcionado até agora.

‘Um amor incômodo’ é o primeiro livro de Ferrante, lançado originalmente em 1992. A história foi adaptada pelo diretor italiano Mario Martone no filme de mesmo nome (L’amore molesto; Nasty love em inglês) de 1995. Achei o filme razoável e bem fiel, mas obviamente não tem o mesmo impacto do texto, já que o pensamento caótico de Delia se transforma em uma narrativa simplificada e com flashbacks bem definidos. Serve como curiosidade e para esclarecer algumas questões que talvez não fiquem muito claras no livro.

“Sim, era só puxar um fio para continuar a brincar com a figura misteriosa da minha mãe, ora enriquecendo-a, ora humilhando-a. Mas percebi que eu não sentia mais a necessidade de fazer aquilo e me mexi no feixe de luz exatamente como eu achava que ela se mexia.”

Nota: 5/5

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu tenho Um Amor Incômodo, mas ainda não li. Bem, não sei se leio depois de concluir a tetralogia. Enfim, não li suas impressões, pois não quero saber nenhum detalhe do livro (*quero surpresa, hahahaha*). Mas pela sua nota, você gostou bastante. Beijos, Michelle!

Michelle disse...

Lulu,
Eu sou meio do contra, porque geralmente as pessoas não gostam muito desse livro (mas é meu preferido da Ferrante). Eu estava me segurando para não ler tudo dela de uma vez, só que estou fazendo um curso sobre ela e acabei não resistindo...rs

Anônimo disse...

Voltei!
Como havia comentado contigo, que livro maravilhoso ♥. Elena Ferrante estreou com uma narrativa surpreendente. Achei muito melhor que Dias de Abandono e A Filha Perdida (*sim, me faltam dois livros para concluir a Série Napolitana*). Também adorei a construção fragmentada da narrativa. Enfim, uma das melhores leituras do ano.
Beijos, Michelle!