“A Caverna” fala sobre o antigo e o
novo, sobre adaptações para a sobrevivência, sobre como o crescimento
desenfreado e a busca por lucratividade acima de tudo elimina as
individualidades, automatiza os processos e descarta as pessoas com a mesma
velocidade com que cria produtos desnecessários.
“Será
caso para proclamar que o Centro escreve direito por linhas tortas, se alguma
vez lhe sucede de tirar com uma mão, logo acode a compensar com a outra, Se bem
me lembro, isso das linhas tortas e de escrever direito por elas era o que se
dizia de Deus, observou Cipriano Algor, Nos tempos de hoje vai dar praticamente
no mesmo..."
Um
dos protagonistas da história é Cipriano
Algor, 64 anos, que trabalhou a vida toda na olaria da família e sempre
teve orgulho de sua arte. Embora seja gente simples, mora em uma casa
agradável, que conta com uma amoreira frondosa sob a qual há um banco de pedra,
seu lugar preferido para reflexões.
Dividem
a casa com Cipriano sua filha Marta
e seu genro Marçal, guarda que
trabalha no Centro. A esse reduzido núcleo familiar se junta Achado, um cão sem dono muito
inteligente que aparece numa noite chuvosa e conquista o amor e o respeito dos
moradores.
A
trama é simples: Cipriano, para sobreviver no competitivo mercado, assina um
contrato de exclusividade com o Centro, mas, aos poucos, as pessoas deixam de
comprar louças e substituem-nas por produtos de plástico, o que deixa o oleiro
sem trabalho e sem perspectivas de futuro. É então que Marçal, prestes a
conseguir a tão sonhada promoção, sugere que o sogro vá morar com ele e a filha
no apartamento que o Centro concede aos seus funcionários.
No
entanto, mudar-se para o Centro envolve muito mais do que botar os poucos
pertences na mala e ir morar em um novo endereço; significa, para Cipriano,
deixar para trás seu ofício, suas raízes, sua herança, sua identidade. Para
piorar, o Centro não é o paraíso alardeado aos quatro cantos pelos comerciais:
o lugar é um complexo monstruoso com vários edifícios, tão próximos uns dos
outros que é impossível saber onde começa um e onde termina o outro; os
moradores nunca veem a luz do sol, são monitorados o tempo todo e precisam de
crachá e autorização para circular em determinadas áreas. Além disso, o Centro
não permite a presença de animais, o que deixa Cipriano ainda mais triste.
É
impossível não se identificar com a história. Em algumas passagens o autor
descreve o trajeto de Cipriano desde sua casa, em um povoado distante, passando
pelas favelas e pela zona industrial cinzenta e vazia, até chegar ao Centro,
onde fazia entregas. Lá dentro, tudo o que seduz: produtos dos mais variados
tipos, atrações de toda sorte, comidas de todos os cantos do mundo, todas as
facilidades reunidas em um ambiente totalmente artificial. Quem nunca passou
horas dentro de um shopping sem perceber que do lado de fora caía uma
tempestade, ou que havia parado de chover e fazia um calor de lascar, ou que os
motoristas de ônibus do nada tinham entrado em greve e não havia como voltar
para casa? Sim, bem comum esse tipo de coisa acontecer e a gente nem notar,
alheios que ficamos nesse mundinho “perfeito”.
Embora
continue irônico e faça uma crítica ferrenha à sociedade contemporânea, desta
vez Saramago pega mais leve na censura à Igreja, e usa a alegoria da caverna,
de Platão, para mostrar o quanto as pessoas ficam deslumbradas com a tecnologia
e o quanto é difícil se libertar, abrir os olhos e enxergar outras realidades.
Ah...
e quero deixar registrado que Achado é o meu personagem favorito e que eu não
sabia que sua importância na história era tão grande, ou teria escolhido
"A Caverna" para ler no mês dos animais protagonistas. Ele é fofo
demais!
“Decerto
por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir
opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das
lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos
persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade
de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave
chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos".
3 comentários:
Que legal, Michelle! Adorei a resenha!
Já faz um tempinho que o li pra minha monografia, mas lembro que apesar de ser uma leitura mais densa, pois o livro é muito filosófico, essa obra dá muito pano pra manga e por isso foi muito rico pro meu trabalho (foquei no contraste entre modernidade x pós-modernidade etc). Preciso reler um dia. =)
Beijinho!!!
Oi, Michelle :) O título é bem chamativo e compreendi, no fim, a razão de se chamar "A Caverna".
Nunca li Saramago, mas acho que seria uma boa maneira de começar.
E o mais interessante é a abordagem do tema, bem atual.
Bjs ;)
Lua,
Deve ter ficado interessante sua monografia. Assuntos para discussão não faltam nesse livro, né?
Ana,
A Caverna não é o meu preferido, mas Saramago é sempre uma boa escolha. E mais atual do que nunca.
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