sexta-feira, 12 de abril de 2013

Resenha: A Caverna



“A Caverna” fala sobre o antigo e o novo, sobre adaptações para a sobrevivência, sobre como o crescimento desenfreado e a busca por lucratividade acima de tudo elimina as individualidades, automatiza os processos e descarta as pessoas com a mesma velocidade com que cria produtos desnecessários.

“Será caso para proclamar que o Centro escreve direito por linhas tortas, se alguma vez lhe sucede de tirar com uma mão, logo acode a compensar com a outra, Se bem me lembro, isso das linhas tortas e de escrever direito por elas era o que se dizia de Deus, observou Cipriano Algor, Nos tempos de hoje vai dar praticamente no mesmo..."

Um dos protagonistas da história é Cipriano Algor, 64 anos, que trabalhou a vida toda na olaria da família e sempre teve orgulho de sua arte. Embora seja gente simples, mora em uma casa agradável, que conta com uma amoreira frondosa sob a qual há um banco de pedra, seu lugar preferido para reflexões.

Dividem a casa com Cipriano sua filha Marta e seu genro Marçal, guarda que trabalha no Centro. A esse reduzido núcleo familiar se junta Achado, um cão sem dono muito inteligente que aparece numa noite chuvosa e conquista o amor e o respeito dos moradores.

A trama é simples: Cipriano, para sobreviver no competitivo mercado, assina um contrato de exclusividade com o Centro, mas, aos poucos, as pessoas deixam de comprar louças e substituem-nas por produtos de plástico, o que deixa o oleiro sem trabalho e sem perspectivas de futuro. É então que Marçal, prestes a conseguir a tão sonhada promoção, sugere que o sogro vá morar com ele e a filha no apartamento que o Centro concede aos seus funcionários.

No entanto, mudar-se para o Centro envolve muito mais do que botar os poucos pertences na mala e ir morar em um novo endereço; significa, para Cipriano, deixar para trás seu ofício, suas raízes, sua herança, sua identidade. Para piorar, o Centro não é o paraíso alardeado aos quatro cantos pelos comerciais: o lugar é um complexo monstruoso com vários edifícios, tão próximos uns dos outros que é impossível saber onde começa um e onde termina o outro; os moradores nunca veem a luz do sol, são monitorados o tempo todo e precisam de crachá e autorização para circular em determinadas áreas. Além disso, o Centro não permite a presença de animais, o que deixa Cipriano ainda mais triste.

É impossível não se identificar com a história. Em algumas passagens o autor descreve o trajeto de Cipriano desde sua casa, em um povoado distante, passando pelas favelas e pela zona industrial cinzenta e vazia, até chegar ao Centro, onde fazia entregas. Lá dentro, tudo o que seduz: produtos dos mais variados tipos, atrações de toda sorte, comidas de todos os cantos do mundo, todas as facilidades reunidas em um ambiente totalmente artificial. Quem nunca passou horas dentro de um shopping sem perceber que do lado de fora caía uma tempestade, ou que havia parado de chover e fazia um calor de lascar, ou que os motoristas de ônibus do nada tinham entrado em greve e não havia como voltar para casa? Sim, bem comum esse tipo de coisa acontecer e a gente nem notar, alheios que ficamos nesse mundinho “perfeito”.

Embora continue irônico e faça uma crítica ferrenha à sociedade contemporânea, desta vez Saramago pega mais leve na censura à Igreja, e usa a alegoria da caverna, de Platão, para mostrar o quanto as pessoas ficam deslumbradas com a tecnologia e o quanto é difícil se libertar, abrir os olhos e enxergar outras realidades.

Ah... e quero deixar registrado que Achado é o meu personagem favorito e que eu não sabia que sua importância na história era tão grande, ou teria escolhido "A Caverna" para ler no mês dos animais protagonistas. Ele é fofo demais!

“Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos".

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Mais uma leitura proporcionada pelo Livro Viajante do Skoob

3 comentários:

Anônimo disse...

Que legal, Michelle! Adorei a resenha!
Já faz um tempinho que o li pra minha monografia, mas lembro que apesar de ser uma leitura mais densa, pois o livro é muito filosófico, essa obra dá muito pano pra manga e por isso foi muito rico pro meu trabalho (foquei no contraste entre modernidade x pós-modernidade etc). Preciso reler um dia. =)
Beijinho!!!

Anônimo disse...

Oi, Michelle :) O título é bem chamativo e compreendi, no fim, a razão de se chamar "A Caverna".
Nunca li Saramago, mas acho que seria uma boa maneira de começar.
E o mais interessante é a abordagem do tema, bem atual.

Bjs ;)

Michelle disse...

Lua,
Deve ter ficado interessante sua monografia. Assuntos para discussão não faltam nesse livro, né?

Ana,
A Caverna não é o meu preferido, mas Saramago é sempre uma boa escolha. E mais atual do que nunca.