LIVRO: CORAÇÕES SUJOS
O
fim da segunda guerra, em 1945, dividiu a imensa colônia japonesa do estado de
São Paulo em dois grupos: os kachigumi
ou vitoristas, grande maioria dos imigrantes japoneses que eram extremamente fiéis
ao Imperador Hiroíto e se recusavam a acreditar que seu país natal havia
perdido a guerra; e os makegumi ou
derrotistas, minoria dos colonos que acreditavam na rendição do Japão. Assim
nasceu a Shindo Renmei, ou “Liga do Caminho dos Súditos”, uma associação que
pretendia manter vivo o yamatodamashii,
o modo de vida japonês, eliminando, para tanto, todos aqueles que optassem por
acreditar na verdade.
“Você tem o coração sujo, então deve manter
a garganta lavada...”
Traduzindo:
“Você é um traidor do grande império japonês e vai morrer”. Era com esse recado
direto que a Shindo Renmei informava aos derrotistas sobre seu destino.
O
livro de Fernando Morais é resultado de uma vasta pesquisa que revelou uma
parte da história brasileira que parece ficção. Até a publicação de “Corações
Sujos” e sua posterior adaptação para o cinema, pouquíssimas pessoas conheciam a saga dos “7 heróis de Tupã”,
homens comuns que se uniram para demonstrar sua fidelidade ao imperador japonês e
o orgulho de suas origens.
O
fato é que o governo brasileiro teve um papel decisivo na criação da Shindo
Renmei e de outras associações do gênero, que surgiram depois das duras
restrições impostas aos japoneses: proibição do uso de sua língua materna,
fechamento das escolas das colônias, apreensão de rádios, suspensão de veículos
impressos em língua japonesa e tomada de dinheiro e terras, entre outras
coisas.
A
repressão do governo só piorou o sentimento dos imigrantes de estarem perdidos
em uma terra estranha sem nenhum contato com a terra natal e aumentou o
preconceito que a população brasileira tinha contra eles (alimentado
publicamente pela imprensa). Linchamentos de colonos aconteciam em praça
pública e assassinatos dos corações sujos eram recorrentes, mas a polícia
estava ocupada demais para investigar, pois sua prioridade era acalmar as
revoltas populares que clamavam pelo fim da ditadura, controlar as greves que
pipocavam por todo lado e monitorar os jornais que se libertavam da censura.
O
saldo dos 13 meses de atuação da Shindo Renmei é alarmante: 23 mortos e 147
feridos. Durante o período em que a polícia tentava descobrir quem estava por
trás do grupo de extermínio, 31.000 japoneses foram presos, 381 denunciados e
80 condenados à expulsão do país (que foram perdoados por Juscelino
Kubitschek).
Fiquei
chocada com a descoberta dessa parte da nossa história que não consta em nenhum
livro didático. Principalmente porque os japoneses têm uma imensa influência na
cultura paulista e sempre me pareceram os imigrantes mais queridos por aqui
(talvez atrás dos italianos apenas). Eu não fazia ideia do quanto a colônia
havia sofrido na época da guerra e nem em sonho poderia imaginar essa luta
interna. Interessante e muito triste.
Os acontecimentos
narrados no livro são baseados em documentos, arquivos da imprensa, depoimentos
e entrevistas com os poucos envolvidos que ainda estavam vivos no ano 2000. O
livro conta ainda com fotos de época. A linguagem é bem jornalística e se atém
aos fatos. A única dificuldade que tive foi com a grande quantidade de nomes
envolvidos. De resto, é uma leitura simples, mas cheia de detalhes, o que compromete um pouco a velocidade.
“Como
espectros que tivessem surgido do nada, às nove horas da noite sete japoneses
descalços, com idades variando entre vinte e 41 anos, sérios e com ar decidido,
postaram-se diante da delegacia de polícia. Uns traziam nas mãos porretes de
madeira semelhantes a tacos de beisebol. Outros estavam armados das mortais
catanas, sabres embainhados em bambu trabalhado, em cujo interior ocultava-se
uma afiada lâmina de aço curva, de oitenta centímetros de comprimento. Eles
usavam calções ou tinham a barra das calças arregaçadas até a metade da perna,
como se tivessem acabado de chegar da lavoura (...). Como o prédio da polícia
ficava em plena avenida Tamoios, no centro da cidade, para chegar até lá
tiveram que atravessar uma Tupã às escuras – uma aparição que assombrou os
moradores das imediações, que fecharam portas e janelas à aproximação do grupo
silencioso. Alguma coisa ruim estava para acontecer.”
Essencial
para conhecer um pouco mais sobre nossa história e, de quebra, acompanhar uma
aventura que parece ter saído da mente de algum cineasta.
O
filme é a versão ficcional romanceada inspirada no livro de mesmo nome. A
história é narrada por Miyuki (Takako Tokiwa), professora primária e esposa de Takahashi (Tsuyoshi Ihara),
fotógrafo que passa a fazer parte do grupo de matadores.
O
foco do filme é a transformação de um homem simples, profissional dedicado e
marido amoroso em assassino. O filme evidencia o lado de pessoa comum que se
envolve com a matança para defender seus princípios, mas que luta com os
dilemas morais e, ao longo da trama, passa a questionar a si mesmo e a
organização.
Ao
mesmo tempo, temos a visão de Miyuki, que luta por seu amor. Ao contrário do
livro, que pouco menciona as mulheres (já que elas não se envolviam nos acertos
de contas e nas reuniões da Shindo Renmei), aqui vemos o sofrimento das esposas
e filhas. É possível sentir os temores de Miyuki e suas emoções conflitantes,
pois ao mesmo tempo em que quer apoiar o marido e sua defesa do orgulho
japonês, ela também quer que ele volte vivo para casa. Uma das cenas mais
bonitas é aquela em que Miyuki enrola no corpo do esposo a bandeira do sol
nascente (aquela com os raios), símbolo da marinha imperial do Japão,
ajudando-o em sua preparação para o combate.
Além
disso, o filme mostra muito bem a insanidade que era perseguir um vizinho e
amigo só porque ele acreditava na rendição do império japonês. Pessoas que
estavam sempre juntas, se empenhando no desenvolvimento da comunidade e
participando de comemorações, de repente de viam de lados opostos de uma guerra
particular.
A
maioria do elenco de “Corações Sujos” era de atores japoneses, que não
falava português nem inglês. A comunicação entre diretor e atores só acontecia
por meio de intérprete. Segundo consta, o filme foi bem recebido no Japão, onde, assim como no Brasil, a existência das divergências entre os imigrantes era desconhecida.
Não tem a mesma força do livro, mas é uma história bonita e desperta a curiosidade sobre o que de fato aconteceu.
Trailer legendado:
Trailer legendado:
2 comentários:
Nossa, Michelle, essa história parece ficção mesmo. Muito chocante. Esse mês andei vendo uns livros do Fernando Morais e desejando ler mais alguma coisa dele. Li "Olga" há tempos, mas acho que quero encarar "Chatô, o rei do Brasil".
Bjs!
Maira
Lembro que comentei com você (no post da TAG: Nacionais da Minha Estante) que não sabia que o filme tinha sido baseado em um livro. Ainda não adquiri o livro, mas acho que vou começar pelo filme, pois pelo que entendi da sua resenha a obra literária tem um tom mais jornalístico. Então acho que nessa ordem (filme > livro) não terei a leitura comprometida. Beijos, Michelle!
Postar um comentário