LIVRO: O Conto da Aia
Num
futuro não muito distante, o presidente e todos os membros do congresso dos
Estados Unidos foram assassinados e, em meio ao caos, o exército assumiu o
comando. Rapidamente a ex-república democrática e terra das oportunidades se
transformou em Gilead, uma nação
teocrática totalitarista. Estrangeiros e negros foram expulsos do país, a
população restante foi dividida em castas com funções muito específicas e
aqueles que não tinham utilidade para o regime foram enviados para as colônias penais,
terras distantes com altos níveis de radiação. Mesmo na desgraça, sempre há
alguns mais desgraçados que outros. Nessa nova sociedade baseada em religião, adivinhem
para quem sobrou a pior parte?
Para
as mulheres, é claro. Foram divididas em categorias, dentre elas: marthas
(espécie de empregadas domésticas), tias (religiosas que administravam os
centros em que eram treinadas as aias) e aias (as reprodutoras). Em um mundo em
que grande parte da população ficou estéril devido à radiação, as aias têm a
função crucial de garantir a perpetuação da espécie. No entanto, apesar da aura
de “especiais” a elas atribuída, na verdade, elas são propriedade do Estado.
Isso fica muito claro desde o momento em que são aprovadas em uma avaliação e
designadas para uma família de militares de alta patente (os únicos que têm
privilégios nessa nova sociedade): as aias perdem o nome de batismo e recebem o
nome do seu dono. E essa perda de identidade é só o começo do martírio.
A
aia narradora da história, por exemplo, passa a se chamar Offred, ou seja, “of Fred” (do Fred). Antes de o novo regime entrar
em vigor ela era uma mulher independente, que trabalhava para ganhar o próprio
dinheiro, acreditava que era totalmente livre para tomar suas decisões, torcia
o nariz para a mãe e seus protestos feministas (os quais considerava exagerados
e desnecessários), vivia feliz em seu mundo aparentemente perfeito, com o
marido e a filha. A nova sociedade a faz enxergar o quanto estava errada.
Desesperada, ela e sua família tentam cruzar a fronteira para o Canadá, mas as
coisas não saem como planejado, e o marido desaparece para sempre, restando a
ela conviver com a culpa e com os tormentos de não saber se ele ainda vive ou
se foi assassinado; a filha lhe é tirada e adotada por uma família poderosa; a
ela só resta a opção de seguir as novas ordens e rezar para engravidar.
Com
seu passado apagado, as aias são obrigadas a usar roupas quentes e pesadas que
cubram seu corpo todo, bem como um chapelão que serve de cabresto e as impede
de escutar direito e de olhar para qualquer outra coisa que não seja o caminho
previamente aprovado que têm diante de si quando saem à rua. Elas só podem sair
aos pares, sempre acompanhadas por outra aia, e são vigiadas o tempo todo. Para
cumprir sua função de gerar um filho para a família que as escraviza, as aias
têm apenas um número limitado de tentativas: se falharem serão devolvidas e
mortas (ou enviadas para as colônias, o que dá praticamente na mesma); se forem
bem-sucedidas, serão realocadas para outra família, para que possam gerar
crianças até que seus prazos de validade expirem. Que ótimo, não?
O
ritual de procriação é bem bizarro e envolve a Esposa, o Oficial e a Aia. E
mesmo que, a princípio, pareça que as esposas têm uma vida boa, nesse momento
vemos sua humilhação, tão grande quanto a da aia – afinal, mesmo estando em
extremidades opostas das castas, ambas são mulheres e estão sujeitas aos
desígnios masculinos e devem cumprir sem reclamar os papéis incômodos que não
escolheram.
O livro é tão extraordinário e tem tanta coisa a ser discutida que eu poderia ficar falando dele por mais uns bons parágrafos. Mas não quero deixar a resenha ainda maior do que já está. Só não posso deixar de mencionar minha personagem preferida: Moira. Ela já era amiga de Offred desde antes da instituição do novo regime e sempre demonstrou rebeldia. Quando a teocracia totalitária se instala, ela, que é lésbica (um sacrilégio imperdoável), oculta essa informação e vai parar no centro de treinamento de aias. É lógico que fica indignada com tudo que vê ali e resolve fugir, mesmo sem grandes planos para o futuro. Anos depois, Offred a encontra novamente e se surpreende pelas condições em que se dá esse encontro. Fiquei muito triste com o destino de Moira, mas, à sua maneira, foi uma forma de conseguir liberdade (bem restrita, diga-se de passagem, mas a única possível dentro daquele universo). Ela é apenas um grão de poeira naquele sistema, mas é admirável por se recusar a aceitar aquela situação absurda.
Essa
foi uma leitura compartilhada que fiz com a Lulu. Além de a leitura em si ter sido maravilhosa, as conversas
que tivemos foram muito enriquecedoras (obrigada, Lulu!). Percebemos um
estranhamento inicial, quando ainda não é possível compreender totalmente o que
está se passando, seguido por uma sensação de sufocamento, causada tanto pela
indumentária das aias quanto por sua condição dentro dessa sociedade opressora.
O final aberto do livro nos fez seguir por caminhos diferentes, mas ambos
interessantes e possíveis. Foi uma experiência incrível e recomendo muitíssimo
a leitura dessa obra (que foi adaptada para o cinema, teatro e até dramatização
no rádio).
“O Conto da Aia” ocupa a posição de
número 37 da lista de livros banidos
entre os anos de 1990 e 2000 da Associação Americana de Bibliotecas. Não é
muito difícil perceber os motivos. Margaret
Atwood critica sem piedade a religião, a discriminação racial, a xenofobia
e a forma como são tratadas as mulheres. Como toda distopia, as atrocidades
cometidas na sociedade imaginária do livro não estão muito distantes do que
vemos no nosso dia a dia. Os argumentos de que tudo é feito “para o próprio bem
das mulheres, para protegê-las, para que sejam valorizadas” são exatamente os mesmos usados atualmente, que culpam as vítimas enquanto eximem
os reais culpados e os glorificam por seus atos grotescos.
“O do
bigode abre o pequeno portão para pedestres para nós e recua um bocado,
postando-se bem longe do nosso caminho, e passamos. Enquanto nos afastamos sei
que estão nos observando, esses dois homens que ainda não têm sequer permissão
para tocar em mulheres.
Eles tocam com os olhos, e eu remexo um pouco os quadris,
sentindo a saia vermelha rodada balançar ao meu redor. É como dar uma banana
quando se está atrás de uma cerca ou atiçar um cachorro com um osso mantido
fora do alcance, e sinto-me envergonhada de meu comportamento, porque nada
disso é culpa desses homens, são jovens demais.
Então
descubro que afinal não estou envergonhada. Aprecio o poder; o poder de um osso
de cachorro, passivo mas presente. E espero que fiquem de pau duro ao nos verem
e que tenham que se esfregar contra as barreiras pintadas, às escondidas. Eles
sofrerão, mais tarde, à noite, em suas camas de regimento. Agora não dispõem
mais de quaisquer meios para dar vazão, exceto por si próprios, e isso é um
sacrilégio. Não existem mais revistas, não existem mais filmes, não existem
mais substitutos; só eu e minha sombra se afastando dos dois homens, que se
perfilam rapidamente, rigidamente, junto a uma barreira de estrada, impedindo um
caminho, observando nossas formas que se distanciam.”
Uma
história muito bem escrita que, além de entreter, gera tensão e faz pensar no
mundo em que vivemos. Para mim, uma combinação perfeita.
Como
eu disse antes, o livro ganhou várias adaptações. Então, assim que terminei de
ler, tratei logo de assistir ao filme. Nessa versão da história, Offred é interpretada por Natasha
Richardson, o Comandante é
vivido por Robert Duvall e a Esposa
é encarnada por Faye Dunaway.
3 classes de mulheres: a martha (de verde), a esposa (de azul) e a aia (de vermelho) em preparação para a noite do ritual |
Com
um livro tão cheio de detalhes e com tantas nuances e acontecimentos
importantes, eu já esperava que o tempo de projeção não desse conta de
tudo. Só que algumas coisas me desagradaram muito. A primeira foi a ausência do chapelão. Talvez pela
dificuldade de filmar personagens usando com um trambolho daqueles na cabeça,
mas enfim... O fato é que era uma peça fundamental do vestuário das aias, que
limitava ainda mais suas ações e as enclausurava em si mesmas.
Ilustração inspirada em uma cena do livro e a versão do adereço usada na peça |
A
segunda coisa que me deixou irritada foi a relação
romantizada de Offred com Nick (Aidan Quinn),
o motorista do Comandante. De fato, eles se envolvem no livro, mas é um
relacionamento conturbado, intenso, que servia de válvula de escape para a aia
e de rebeldia para Nick. Para ela, era um risco mas também uma esperança: se
fosse pega seria enforcada e pendurada no Muro, para servir de exemplo; mas
também poderia ter a sorte de engravidar, já que o Comandante parecia estar
tendo dificuldade para conceber (e é lógico que ninguém jamais diria que o
problema de fertilidade era dele). Além disso, o tempo todo ela era corroída
pela culpa, afinal o marido talvez ainda estivesse vivo; mesmo que estivesse
morto, isso não aliviava nem um pouco a pressão sobre ela. E ainda havia
dúvidas sobre o paradeiro da filha, que ela esperava encontrar um dia. Como se vê,
era impossível que Offred vivesse um amor adolescente com expectativa de final
feliz, mas é exatamente isso que o filme dá a entender.
Offred (antes de perder a identidade) e Moira no centro de treinamento de aias |
Mas
não vou ficar só criticando a adaptação, que, em geral, cumpre bem o seu papel.
Destaco como pontos positivos o ritual de procriação, que exemplifica
bem a angústia daquelas mulheres unidas contra suas vontades e a cena do Testemunho de Janine, uma das garotas
do centro de treinamento de aias que, durante as sessões semanais de
purificação, conta que foi abusada sexualmente por um grupo de garotos e acabou
fazendo um aborto, e é duramente apontada pelas demais como culpada pelo
ataque. A cena, que já era absurdamente revoltante no livro, ganha força na
tela ao observarmos o desamparo da menina e a crueldade do sistema.
Todas as classes de mulheres em uma celebração religiosa obrigatória |
Embora
o final também seja aberto no filme, aponta mais para um desfecho esperançoso
(ao contrário do que eu imaginei ao ler o livro – sou trágica!... rs). Mesmo
assim, achei digno.
Apesar
de seus problemas e diferenças, achei um bom filme e recomendo uma conferida.
6 comentários:
Nossa, esse livro deve ser muito bom!
Dela eu li A odisseia de Penélope, que tem também um tom bem reflexivo no lugar do feminino, mas gostei de umas coisas e não gostei de outras.
Vcs leram em ebook? Será que é fácil de encontrar?
beijo, Mi!
Adoro esse livro! Sua resenha ficou ótima, como de costume, e me fez lembrar que preciso ler outros livros da autora.
Primeiramente, gostaria de agradecer a companhia ^_^ Adorei nossas conversas enriquecedoras <3 Michelle, suas resenhas (livro e filme) ficaram ótimas!
Livro –
Em relação filha que lhe é tirada e adotada por uma família poderosa, acabei de lembrar que na Ditadura Militar Argentina existiu esse tipo de prática horrenda. Tinha visto que era em torno de 500 crianças sequestradas ou nascidas em cativeiro. Até hoje as mães / avós sobreviventes estão procurando seus filhos / netos.
A descrição que Margaret Atwood faz das roupas das Aias é para lembrar constantemente da condição de subserviência daquela classe. Chega ao ponto de ser sufocante.
Moira <3 Personagem que está lá para dar voz a nossa revolta. Como comentei na conversa, fiquei triste com o destino dela, mas achei palpável.
“O final aberto do livro nos fez seguir por caminhos diferentes, mas ambos interessantes e possíveis.” - Verdade! ;)
Não me surpreende que O Conto da Aia ficou entre os livros banidos nos Estados Unidos da América.
O Conto da Aia já entrou na minha lista dos melhores livros lidos em 2015. Quero ler mais obras da autora. Gostei muito da escrita dela.
Filme –
Sobre a roupa, realmente, ficaria difícil, mas poderiam ter enfatizado no significado. Concordo com os pontos positivos, principalmente a cena do Testemunho de Janine. Sério, fiquei revoltada.
“Como se vê, era impossível que Offred vivesse um amor adolescente com expectativa de final feliz, mas é exatamente isso que o filme dá a entender.” – Resumiu perfeitamente. Desnecessário essa relação romantizada.
Beijão, Michelle!
Maira,
O Odisseia está na minha lista de leituras, mas já me disseram que tem problemas. Vamos ver.
Lígia,
Foi meu primeiro dela e estou louca para ler outros!
Lulu,
É verdade! Tudo a ver com a ditadura argentina!
Moira é o respiro dessa história <3
Pois é. Falando de tanta coisa incômoda, o coitado do livro só podia ser banido mesmo...
Sabe o que mais me revoltou na cena do testemunho da Janine? É que acontece frequentemente na vida real :(
Adorei nossas conversas! Vamos planejar nossa próxima leitura! ;)
Pois é, a cena do testemunho da Janine não tem nada de exagerado. São os mesmos julgamentos e até a forma violenta.
Com certeza teremos mais leituras compartilhadas e conversas ^_^
Olá, passando só pra dizer que acabei de ler o livro e dizer que adorei, apesar de ficar angustiada tbm.
Além do livro,agoram em 2017 vai ter uma série que estreia em abril.
Trailer https://www.youtube.com/watch?v=8ApfoGLBsmc
https://www.youtube.com/watch?v=mQgosh5EOoY
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