Já
faz 2 semanas que terminei de ler “Ainda
estou aqui” e não consigo escrever uma resenha decente. Falando bem
superficialmente (afinal, preciso começar por algum lugar), em seu novo livro Marcelo Rubens Paiva mescla memórias
particulares com acontecimentos da história pública recente do país em uma
narrativa que resgata lembranças de sua infância feliz, tenta entender sua
juventude conturbada e procura montar o quebra-cabeça do passado de sua família
em busca de pistas que lhe ajudem a trilhar uma nova fase de sua vida.
Ler
esse livro foi como sentar ao lado daquele amigo que é bom contador de
histórias. Falando de um jeito franco e sem afetação, Marcelo revive os dias de diversão no interior
com os primos, os bailinhos adolescentes, as dificuldades com as garotas e,
claro, o período nebuloso que envolveu o desaparecimento de seu pai durante a ditadura, bem como os anos difíceis que
vieram depois, as informações desencontradas, a vida em suspenso enquanto a
morte não era oficialmente decretada. Ele fala, sobretudo, de sua mãe, ou melhor, das várias faces de sua
mãe.
Eunice Paiva nunca se encaixou no
estereótipo de mãe ideal – não era do tipo afetuoso (não era daquelas que ficam
beijando, abraçando, apertando o tempo todo) e não tolerava manhas – tampouco se
enquadrava na descrição de uma italiana típica (vivia de regime, não falava
alto nem gesticulava demais). Nas férias, preferia ficar trancada no quarto,
lendo, a brincar com os filhos e outras crianças da família na piscina. Era uma
mulher prática, que ensinava (e cobrava) as regras da boa educação, mas que
dava autonomia aos filhos para que assumissem obrigações e tomassem suas
próprias decisões (o autor guarda uma mágoa infantil por sua mãe jamais ter ido
a uma reunião de pais e mestres de seu colégio – o que teria feito qualquer
criança comemorar – mas ela não fazia isso por desinteresse: fazia porque
confiava no que havia passado aos filhos, acreditava na capacidade deles).
No
entanto, foi justamente essa praticidade, essa visão racional das coisas, que
lhe permitiu tomar as rédeas da família e seguir vivendo com ordem e
determinação após o desaparecimento do marido. Uma mulher que sempre fora uma
esposa exemplar, do tipo que espera o cônjuge com o jantar recém-saído do
forno, um visual impecável e um sorriso no rosto, então se via em uma situação
nova: cinco filhos para cuidar, contas bancárias e bens bloqueados, um seguro
de vida que não podia resgatar devido à impossibilidade de provar a morte do
esposo. Com sua sensatez aliada ao senso de urgência, arregaçou as mangas e foi
estudar, formou-se em direito, mergulhou no trabalho, envolveu-se com causas
indígenas.
Uma
mulher forte, sem dúvida. E é justamente por isso que o autor sofre ao vê-la
sendo dominada pelo Alzheimer, uma
doença degenerativa e incurável de origem incerta. Depois de uma vida de luta,
aos 77 anos, a mãe é interditada judicialmente. Ela, que ajudara a cuidar da
interdição de parentes e amigos tantas vezes, agora assumia para o lado passivo
da história. Ela, que criara os filhos sozinha e cuidara intensamente de Marcelo
quando ele sofreu o acidente que o deixou paraplégico, agora passava a ser
responsabilidade dele, passava a ser cuidada por ele. A inversão dos papéis.
Gostei
muito das partes em que o autor fala da doença da mãe, de como a deterioração
física e mental dela afetou a todos ao redor, dessa mudança na relação
entre a mãe e ele e de como seu próprio filho entrou na equação e conseguiu se
comunicar com a avó mesmo sem palavras.
Outra
característica do livro que me agradou muito foi que Marcelo consegue escrever
de um jeito leve, mesmo quando aborda assuntos pesados, como o Alzheimer e a
ditadura. Aliás, achei bem bacana um trecho em que ele fala dos militares sem
generalizar, dizendo que sabia que o inimigo era um regime, não uma carreira, e quando enfatiza a busca por justiça, mas sem sentimentos como
ódio ou vingança.
“Naquela
tarde que pegamos o atestado de óbito, em 1996, vi minha mãe então chorar como
nunca fizera antes. Era um urro. Não tinha lágrimas. Como se um monstro
invisível saísse de sua boca: uma alma. Um urro grave, longo, ininterrupto.
Como se há muito ela quisesse expelir. Pela primeira vez, me deixou falar, sem
me interromper. Pela primeira vez, na minha frente, chorou tudo o que havia
segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que quis. Foi um choro de vinte e cinco
anos em minutos. O
rompimento de uma represa.”
Foi ótimo reencontrar um velho amigo depois de muitos anos e conhecer novos detalhes de
uma história que eu já havia escutado anteriormente. Recomendo muito!
Esta postagem faz parte do projeto Lendo a Ditadura. Visitem o blog oficial para ver outras colaborações.
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