Em “Pessach: A Travessia” acompanhamos o
escritor Paulo Simões em uma série
de compromissos que ele deveria cumprir no dia de seu 40º aniversário: ir ao
escritório para falar com seu editor, visitar a filha no internato, passar pela
casa dos pais para o almoço protocolar, aproveitar para dar um pulo na casa da
ex-esposa, receber um colega que dizia ter um assunto urgente para tratar. A
cada parada, uma surpresa. O dia que parecia ser apenas mais um igual a tantos outros
se transforma no início de uma grande mudança.
Paulo
é um cara comum, que se define como simples, neutro, sem nenhum traço que o
faça se destacar, sem amigos, dívidas ou amores. No dia em que completa 40 anos
ele se sente velho, cansado e inútil. Tudo o que quer é ter um dia agradável e
sem complicações, mas isso é exatamente o oposto do que acontece. No
escritório, o editor lhe pede um conto com um tema inusitado e fútil; no
internato a filha se mostra animada ao falar dos livros comunistas proibidos
que lê às escondidas com as amigas e o chama de alienado; na casa dos pais, a
mãe sofre de dores e aguarda o médico enquanto o pai diz que quer se assumir judeu
depois de uma vida toda de negação – e ainda esquecem de seu aniversário; a
ex-esposa lhe apresenta ao novo marido beberrão e ao filho recém-nascido que
ele nem sabia da existência; por fim, o antigo colega o convoca para a luta
contra a ditadura. Novidade demais para absorver de uma vez.
Sendo
um cara declaradamente sem posicionamentos, Paulo Simões (cujo sobrenome real e
judeu é Simon e que aprendera a renegar sua origem com o pai) ri diante da
proposta do colega Sílvio. Envolver-se em política, lutar contra a ditadura,
pegar em armas? Não, nem pensar! Ele já demonstrava seu apoio assinando
manifestos. Era o máximo que podia fazer, obrigado. E, com licença, mas tenho
um conto encomendado para escrever e vou viajar para poder me dedicar
totalmente ao trabalho. Quem sabe começar a pensar em um novo romance. Adeus e
boa sorte!
Só
que as coisas não saem bem como Paulo havia planejado e, ao dar uma simples
carona a Vera, a moça que fora com Sílvio ao seu apartamento, ele se vê
envolvido com um grupo que se organizava para derrubar a ditadura. Acaba
ficando preso em um sítio que servia de base para um braço da organização (não
que fosse refém; apenas não podia ir embora), é apresentado ao funcionamento do
local, recebe uma cabana só para si, para que pudesse escrever à vontade,
conhece melhor alguns participantes do movimento. Embora ninguém o obrigasse a
participar, Paulo fazia questão de enfatizar sempre que tinha oportunidade que
não queria participar de nada, que só estava ali porque era obrigado, que assim
que pudesse voltaria para casa e retomaria sua vida pacata, ordeira e sem
emoção.
No
entanto, sem se dar conta, Paulo acaba envolvido na luta; primeiro só se
oferecendo para escrever sobre os ideais do grupo antiditadura; depois
realmente partindo para a ação e pegando em armas. Ainda que
relutasse em participar e agisse contra sua natureza, quando, a certa altura da
história, ele é liberado e tem a chance de tomar um avião rumo ao seu
aconchegante e seguro lar, ele já está modificado demais para não se importar
com tudo o que vê ao seu redor.
E é
então que o título do livro passa a fazer sentido: “pessach” significa
“travessia, passagem”, e é a festa judaica que celebra o êxodo do povo hebreu
que preferiu a fome e a morte no deserto a continuar escravo, fugindo pelo Mar
Vermelho. A princípio, era apenas um esboço de romance que Paulo iniciara anos
antes e que pretendia desenvolver nesse período de isolamento – algo que
retomava sua origem judia e que explicava de certa forma a trajetória de seu
pai. Depois o termo se amplia ainda mais, e acaba representando sua própria
trajetória, de alienado e descompromissado a consciente e engajado. Como seus
ancestrais, ele também preferiu abrir mão de uma vida cômoda para encarar as
dificuldades da luta pela liberdade.
A
primeira parte do livro é bem comum e sem ação, refletindo perfeitamente Paulo
e sua existência entediante e sem propósito. A partir do momento em que dá
carona a Vera, ele perde completamente o controle de sua vida, se desespera,
fica irritado, tenta a todo custo voltar para o que conhece e está acostumado.
Como não pode escolher, é arrastado para um mundo bem diferente do seu, o
qual acaba abraçando, deixando sua individualidade de lado pelo bem do
coletivo. Nem preciso dizer que essa segunda parte é bem mais animada e faz a
leitura fluir mais rápido, tornando sua contraposição com o início da história
ainda mais relevante.
“Não
gosto do governo atual, mas jamais gostei de governo algum. Politicamente, sou
anarquista comodista, e, por isso, inofensivo e covarde. Não estou disposto a
dar ou receber tiro por causa da liberdade, da democracia, do socialismo, do
nacionalismo, do povo, das criancinhas do nordeste que morrem de fome. O fato
político não me preocupa, é tudo."
Um sujeito apático que encontra uma motivação para sua vida. Diante de tantos retrocessos que temos visto ultimamente, faz
pensar: até que ponto somos como o protagonista de "Pessach"?
Esta postagem faz parte do projeto Lendo a Ditadura. Visitem o blog oficial para ver outras colaborações.
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