segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Resenha: Pessach - A Travessia


Em “Pessach: A Travessia” acompanhamos o escritor Paulo Simões em uma série de compromissos que ele deveria cumprir no dia de seu 40º aniversário: ir ao escritório para falar com seu editor, visitar a filha no internato, passar pela casa dos pais para o almoço protocolar, aproveitar para dar um pulo na casa da ex-esposa, receber um colega que dizia ter um assunto urgente para tratar. A cada parada, uma surpresa. O dia que parecia ser apenas mais um igual a tantos outros se transforma no início de uma grande mudança.

Paulo é um cara comum, que se define como simples, neutro, sem nenhum traço que o faça se destacar, sem amigos, dívidas ou amores. No dia em que completa 40 anos ele se sente velho, cansado e inútil. Tudo o que quer é ter um dia agradável e sem complicações, mas isso é exatamente o oposto do que acontece. No escritório, o editor lhe pede um conto com um tema inusitado e fútil; no internato a filha se mostra animada ao falar dos livros comunistas proibidos que lê às escondidas com as amigas e o chama de alienado; na casa dos pais, a mãe sofre de dores e aguarda o médico enquanto o pai diz que quer se assumir judeu depois de uma vida toda de negação – e ainda esquecem de seu aniversário; a ex-esposa lhe apresenta ao novo marido beberrão e ao filho recém-nascido que ele nem sabia da existência; por fim, o antigo colega o convoca para a luta contra a ditadura. Novidade demais para absorver de uma vez.

Sendo um cara declaradamente sem posicionamentos, Paulo Simões (cujo sobrenome real e judeu é Simon e que aprendera a renegar sua origem com o pai) ri diante da proposta do colega Sílvio. Envolver-se em política, lutar contra a ditadura, pegar em armas? Não, nem pensar! Ele já demonstrava seu apoio assinando manifestos. Era o máximo que podia fazer, obrigado. E, com licença, mas tenho um conto encomendado para escrever e vou viajar para poder me dedicar totalmente ao trabalho. Quem sabe começar a pensar em um novo romance. Adeus e boa sorte!

Só que as coisas não saem bem como Paulo havia planejado e, ao dar uma simples carona a Vera, a moça que fora com Sílvio ao seu apartamento, ele se vê envolvido com um grupo que se organizava para derrubar a ditadura. Acaba ficando preso em um sítio que servia de base para um braço da organização (não que fosse refém; apenas não podia ir embora), é apresentado ao funcionamento do local, recebe uma cabana só para si, para que pudesse escrever à vontade, conhece melhor alguns participantes do movimento. Embora ninguém o obrigasse a participar, Paulo fazia questão de enfatizar sempre que tinha oportunidade que não queria participar de nada, que só estava ali porque era obrigado, que assim que pudesse voltaria para casa e retomaria sua vida pacata, ordeira e sem emoção.

No entanto, sem se dar conta, Paulo acaba envolvido na luta; primeiro só se oferecendo para escrever sobre os ideais do grupo antiditadura; depois realmente partindo para a ação e pegando em armas. Ainda que relutasse em participar e agisse contra sua natureza, quando, a certa altura da história, ele é liberado e tem a chance de tomar um avião rumo ao seu aconchegante e seguro lar, ele já está modificado demais para não se importar com tudo o que vê ao seu redor.

E é então que o título do livro passa a fazer sentido: “pessach” significa “travessia, passagem”, e é a festa judaica que celebra o êxodo do povo hebreu que preferiu a fome e a morte no deserto a continuar escravo, fugindo pelo Mar Vermelho. A princípio, era apenas um esboço de romance que Paulo iniciara anos antes e que pretendia desenvolver nesse período de isolamento – algo que retomava sua origem judia e que explicava de certa forma a trajetória de seu pai. Depois o termo se amplia ainda mais, e acaba representando sua própria trajetória, de alienado e descompromissado a consciente e engajado. Como seus ancestrais, ele também preferiu abrir mão de uma vida cômoda para encarar as dificuldades da luta pela liberdade.

A primeira parte do livro é bem comum e sem ação, refletindo perfeitamente Paulo e sua existência entediante e sem propósito. A partir do momento em que dá carona a Vera, ele perde completamente o controle de sua vida, se desespera, fica irritado, tenta a todo custo voltar para o que conhece e está acostumado. Como não pode escolher, é arrastado para um mundo bem diferente do seu, o qual acaba abraçando, deixando sua individualidade de lado pelo bem do coletivo. Nem preciso dizer que essa segunda parte é bem mais animada e faz a leitura fluir mais rápido, tornando sua contraposição com o início da história ainda mais relevante.

“Não gosto do governo atual, mas jamais gostei de governo algum. Politicamente, sou anarquista comodista, e, por isso, inofensivo e covarde. Não estou disposto a dar ou receber tiro por causa da liberdade, da democracia, do socialismo, do nacionalismo, do povo, das criancinhas do nordeste que morrem de fome. O fato político não me preocupa, é tudo."


Um sujeito apático que encontra uma motivação para sua vida. Diante de tantos retrocessos que temos visto ultimamente, faz pensar: até que ponto somos como o protagonista de "Pessach"?

Esta postagem faz parte do projeto Lendo a Ditadura. Visitem o blog oficial para ver outras colaborações.

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