LIVRO: Syngué Sabour –
Pedra-de-Paciência
“Não
divido mais meus dias em horas, minhas horas em minutos, meus minutos em
segundos... um dia, para mim, é igual a 99 voltas de um terço!”
Depois
que o marido jihadista leva um tiro
na nuca e permanece em coma, a esposa, desesperada, segue a instrução do mulá:
recitar 99 vezes por dia um dos 99 nomes de Deus durante 99 dias – ao fim desse
período o homem deve despertar. Só que esse prazo chega ao fim, assim como o
dinheiro e as esperanças da mulher. Abandonada pela família e pelos amigos em
plena zona de guerra com duas filhas pequenas e um marido em estado
vegetativo, ela não sabe mais o que fazer. É então que transforma o corpo
inerte do esposo em sua pedra-de-paciência, uma pedra mística que absorve os
lamentos do confessor e os acumula até o dia em que explode, liberando do peso
quem ali depositou seus sofrimentos.
O
livro começa com uma descrição detalhada do quarto onde se encontram a mulher e
o marido: seu formato, suas cores, as cortinas, seu aspecto geral de abandono.
Depois, descreve o homem ali deitado, seu aspecto físico deteriorado, seu ar de
doente. Em seguida, passa para a mulher, a própria definição de dor e angústia.
A montagem do quadro é interrompida por uma garota que chora em outro cômodo. Pouco
depois, o choro de outra criança irrompe. A mulher, abatida, levanta-se e vai
ver o que se passa com as meninas.
Já
nessas primeiras frases notamos a força narrativa do autor. Somos conduzidos pela mão, as cenas detalhadas se formam sem dificuldade, como se
estivéssemos diante de uma tela que exibe imagens capturadas por uma câmera que
passeia livremente pelo aposento. Somos cúmplices da mulher, sofremos com ela,
torcemos por ela e nos revoltamos com as experiências que ela viveu e despeja
em torrentes sobre o homem imóvel. Como ela mesma revela, é a primeira vez, em
dez anos de casamento, que ela pode falar o que tem vontade; é a primeira vez
que o esposo a ouve.
Achei
incrível acompanhar a transformação da protagonista disposta a tudo para salvar
o marido em uma mulher que se liberta de uma vida opressiva, que de repente
deixa de ser invisível, surda e muda e começa a revelar suas paixões, seus
pecados, suas insatisfações. Ela se livra do peso de ser filha, esposa, mulher.
As confissões que ela faz às vezes surpreendem, às vezes enternecem. E não vou
falar mais para não estragar a história, só digo que o final foi totalmente
inesperado - mas fez todo sentido.
“Perdoe-me!”,
cochicha ela. “Fui obrigada a dizer isso, caso contrário ele teria me violentado.”
Um riso sarcástico a sacode. “Para homens como ele, foder com uma puta,
violentar uma puta não é uma proeza. Meter o pau fedido num buraco que já foi
útil centenas de vezes antes não lhes dá nenhum orgulho viril. Não é mesmo,
minha syngué sabour? Você deve saber
disso muito bem. Homens como ele têm medo das putas. E você sabe por quê? Pois
vou lhe dizer, minha syngué sabour:
quando comem uma puta, vocês não podem dominar o corpo dela. Vocês fazem uma
troca. Dão dinheiro, e ela dá prazer. E posso até mesmo lhe dizer que, muitas
vezes, é ela quem domina vocês. Ela quem come vocês.”
O
que mais gostei, além da narrativa em si, é que o autor realmente consegue se
colocar no lugar de uma mulher, daquela especialmente, e em momento algum soa
artificial ou deturpado. Palmas para ele!
Nota:
5/5
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FILME: A Pedra de Paciência
Se o
livro já tinha uma característica que remetia ao movimento de uma câmera, o
filme não podia decepcionar, certo? Ainda mais porque o autor do livro é também
roteirista e diretor da adaptação.
Na
verdade, pouco havia para adaptar. O livro já era praticamente um script. E
toda a grandiosidade do monólogo da protagonista está lá. A única diferença
notável é que parte de suas falas passaram para a tia, que tinha uma pequena
participação muda no livro, mas ganha mais presença em cena e mais importância.
Passar as palavras da boca de uma para a outra não diminuiu em nada a força do
que é contado.
Gostei
muito do trabalho da atriz Golshifteh Farahani, que faz a
esposa do inválido. Acho que conseguiu transmitir todas as nuances da
protagonista, alternando momentos de doçura com outros explosivos.
De
resto, não tenho muito o que dizer. Achei o filme tão bom quanto o livro, mas
acabou perdendo um pouco do impacto, pois eu já sabia o final. De qualquer
forma, indico fortemente.
Nota:
5/5
Trailer
legendado em português:
2 comentários:
Eu já tinha curiosidade de ler “Pedra de Paciência”, mas depois desse comentário: “(...) é que o autor realmente consegue se colocar no lugar de uma mulher, daquela especialmente, e em momento algum soa artificial ou deturpado. (...)”, a curiosidade só aumentou. Beijos, Michelle!
Lulu,
Foi uma surpresa esse olhar dele. Juro que às vezes, durante a leitura, me peguei pensando se não tinha mesmo sido escrito por uma mulher.
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