segunda-feira, 16 de maio de 2016

Resenha: Outros Cantos


Maria viaja de ônibus pelas estradas do nordeste brasileiro. Sacolejando, observa os passageiros que entram e saem do veículo e compara a situação atual com aquela que viveu 40 anos antes, na cidadezinha de Olho D'Água, para onde foi cheia de esperança assumir a cadeira de educadora do Mobral. Aparentemente, muita coisa mudou desde então. Será mesmo? Enquanto não chega ao seu destino, ela relembra seus dias no povoado, e também suas andanças pela Argélia e pelo México, lugares tão distantes e à primeira vista tão distintos, mas que guardam muitas semelhanças.

Em todo o livro temos, intercalados, trechos do presente, que Maria quer afastar da mente a qualquer custo, e do passado, este envolvo num manto de saudade e melancolia. No início, enxergamos pelos olhos da protagonista uma realidade dura, mas cheia de mistérios e saberes simples. Como Maria, me deixei levar pelos encantos daquelas pessoas batalhadoras que não perdiam jamais a fé e que viam beleza até onde olhos acostumados com outras paisagens percebiam apenas desolação.

Mas em certo momento, aquela atmosfera de sonho começou a me incomodar. Adoro histórias com pessoas comuns que conseguem superar adversidades, que valorizam as pequenas coisas, que respeitam e se adaptam ao ambiente que as cerca, que demonstram o que a humanidade tem de melhor. No entanto, não acredito em milagres nem em aceitar as coisas como são sem questionar – o exato comportamento dos habitantes de Olho d’Água. Felizmente, Maria também, a certa altura, começou a se sentir desconfortável com tanta resignação (ou paciência, segundo os moradores) e resolve agir, perguntar, mostrar outras possibilidades... o que logo percebe que seria uma tarefa difícil.

O engraçado é que, embora os personagens e o próprio cenário de “Outros Cantos” sejam absurdamente parecidos com os de “Vasto Mundo”, desta vez a leitura teve um efeito diferente em mim. Talvez seja pelo formato (este é um romance, enquanto o que li anteriormente são contos), talvez seja por meu estado de espírito... o fato é que no livro de estreia de Maria Valéria Rezende tive a impressão de que o tom de fábula predominou, enquanto no mais recente lançamento fiquei com uma sensação de desesperança no final.

De qualquer forma, acho a escrita da autora muito envolvente e continuo gostando bastante de como ela aborda as questões sociais. Foi mais uma boa leitura.

Nota: 4/5

“Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez nesta aridez. Ainda não se havia espalhado por toda a terra a ilusão de poder-se fraudar o tempo e afastar indefinidamente o envelhecimento e a morte com técnicas cirúrgicas e calistênicas, fórmulas químicas, discursos de autopersuasão, mantras, injeções, próteses, lágrimas e incensos. Então, só era possível fazê-lo tornando-nos heróis, mártires, mitos, símbolos. Apostava-se a vida no que acreditávamos ser maior que a nossa própria vida. Encher de sentido o tempo era, então, mais urgente pois tão passageiro, urgência de marcar o mundo com nossa existência, mesmo que arriscando-nos a torná-la ainda mais breve. Ultrapassar os trinta anos era atravessar o portal da juventude para a idade adulta. Era, então, o exato meio da vida.”

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