LIVRO: O Coração das Trevas
Em
retrospecto, o protagonista Charlie
Marlow conta a seus amigos ingleses os horrores que testemunhou em uma
viagem pela selva africana, mais especificamente no Congo. Desde menino, ela queria explorar o mundo, e conseguiu, por
indicação, ser nomeado para o posto de comandante de um navio a vapor de uma companhia
de comércio belga.
O desconforto
e a atmosfera sombria da história já começam na sala de espera do escritório da
companhia, quando Charlie vai assumir seu posto e receber instruções – as duas
mulheres enigmáticas que tricotavam sem parar e andavam feito sonâmbulas já são
um mau sinal. Pouco depois, é examinado pelo médico, que mede seu crânio, em
nome da ciência, e diz que todos que voltam (quando voltam) apresentam mudanças
internas. O doutor ainda encerra a consulta com um conselho: “Nos trópicos devemos, antes de qualquer
coisa, manter a calma...”.
Bem,
Charlie parte em uma embarcação francesa e vai parando em vários entrepostos,
antes de finalmente chegar ao seu destino final. Durante a viagem, ele observa,
com um misto de fascínio, repulsa, medo e incredulidade, os nativos
escravizados, os ataques bélicos desproporcionais dos colonizadores, a
imponência da natureza selvagem, a cobiça desmedida dos brancos que cometiam as
maiores atrocidades para lucrar com o marfim.
Um
dos grandes méritos do livro é a descrição detalhada das cenas presenciadas por
Charlie. O autor consegue nos transportar para aquelas paisagens distantes e
exóticas – exóticas principalmente se considerarmos que o livro foi publicado
em 1902, quando pouco se sabia do quase inexplorado continente africano. A riqueza da ambientação se deve, em
grande parte, às experiências do próprio autor, que se aventurou pela África em
1890.
Os
nativos são sempre vistos e descritos pelos brancos como selvagens, ignorantes,
inimigos, criminosos. No entanto, o que Charlie testemunha contradiz totalmente
essa imagem: o que ele vê são pessoas frágeis e doentes morrendo de fome;
pessoas que eram submetidas aos piores tratamentos, exploradas, destroçadas e
abandonadas; pessoas que nem eram consideradas como tal devido às suas crenças
e costumes diferentes. Percebemos no protagonista a estupefação e a indignação
muda diante daquela situação. Tudo que ele pode fazer é continuar seguindo em
frente para cumprir sua missão.
Quando
Charlie finalmente completa seu percurso e encontra Kurtz, enviado tempos antes pela Sociedade Internacional para
Supressão dos Costumes Selvagens para produzir um relatório, percebe que está
diante de um homem doente e insano, que desobedeceu às instruções recebidas e,
em vez de civilizar as tribos, entregou-se à 'selvageria' e passou a ser uma
espécie de líder local.
As
questões que o livro propõe: Quem é selvagem, afinal? Os nativos ou os
colonizadores? E quem é insano? Aquele que abraçou seu lado primitivo e humano,
ou os europeus e sua cobiça e violência desmedida?
“De vez em quando, um escaler vindo do
litoral nos trazia um contato momentâneo com a realidade. Era remado por
nativos negros. Podia-se ver de longe a brancura de seus olhos cintilando. Eles
gritavam e cantavam; de seus corpos corria transpiração; os rostos desses
camaradas eram como máscaras grotescas, entretanto, eles tinham ossos, músculos
e vitalidade selvagens, uma intensa energia de movimento que era tão natural e
verdadeira como a arrebentação ao longo da costa. Não precisavam de nenhuma
desculpa para estarem ali. Era uma grande satisfação olhar para eles. Por um
momento, eu me senti como se ainda pertencesse a um mundo verdadeiramente
justo, entretanto, este sentimento não durou muito tempo. Algo surgiria para
espantá-lo. Lembro-me de uma vez que nos encontramos com uma nau de guerra
fundeada na costa. Não havia sequer um barracão ali, mas ela bombardeava a
selva. Parecia que os franceses estavam em guerra por aquelas paragens. Suas
insígnias pendiam como trapos de seus mastros; as bocas dos grandes canhões de
oito polegadas se lançavam por todo o casco inferior; a maré enlameada e oleosa
o erguia e o abaixava indolentemente, oscilando os seus finos mastros. Ele
ficava ali, incompreensivelmente disparando contra o continente, diante da
imensidão vazia da terra, do céu e da água. Disparando por um de seus canhões
de oito polegadas; uma pequena labareda era lançada e desaparecia, uma nuvem
branca se dissipava, um pequeno projétil lançava um chiado franzino – e nada
acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade naquele
procedimento, um sentimento cômico e lúgubre naquela visão toda; e que não se
dissipou quando alguém a bordo me assegurou seriamente que lá havia um
acampamento de nativos... ele os chamou de inimigos... escondidos ali em algum
lugar fora de nossa visão”.
Nota:
4/5
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FILME: Apocalypse Now Redux
O
filme de Coppola usa o livro como inspiração, mas transfere a ação para a
Guerra do Vietnã, que estava em curso no momento das filmagens. O protagonista
passa então a ser o Capitão Willard (Martin Sheen), que é enviado em uma
missão secreta pelo Exército Americano para assassinar o Coronel Kurtz (Marlon Brando),
que possui uma carreira brilhante, mas que parece ter enlouquecido e se
refugiado na selva do Camboja, onde é adorado pela tribo local.
Definitivamente,
não gosto de filmes que se passem no campo de batalha. Com “Apocalypse Now” não foi diferente. Eu já havia
assistido ao filme anos atrás, mas revi agora, na versão "redux" para comparar
com o livro. Resultado: continuo achando um filme mediano e longo demais – o
que não quer dizer que não tenha suas qualidades.
A
primeira é a ousadia de levar para as telas uma guerra que acontecia naquele
exato momento e que era alvo de grande desaprovação por parte dos americanos. O
filme não só é ousado nesse sentido como ainda faz duras críticas à forma como
os soldados agiam em campo: como um bando de adolescentes com hormônios à flor
da pele, dias tediosos e armas potentes nas mãos – o resultado só podia ser
desastroso.
Apesar
de achar o filme arrastado e chato, não há como ignorar uma das cenas mais
icônicas do cinema: aquela em que os helicópteros americanos, sob o comando do Coronel Kilgore (Robert Duvall), sobrevoam uma aldeia ao som de ‘A cavalgada das
Valquírias” e lançam bombas em civis, só para que ele e outros militares
ianques pudessem surfar. Selvageria pura. A cena inicial, com um Willard
delirante em um quarto de hotel em Saigon, também é bem bacana e já á indícios
da insanidade crescente que se vê ao longo do filme.
Em
todo caso, não funcionou para mim. Gosto mais da versão imperialista do Conrad.
Nota:
3/5
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BÔNUS: Documentário – O Apocalipse de um
Cineasta
Como
eu disse, não é por não achar o filme uma maravilha que não reconheço os
méritos de Francis Ford Coppola e de
sua equipe. O documentário “O apocalipse
de um cineasta” é muito interessante, e reúne cenas de bastidores de “Apocalypse Now”, feitas pela esposa do
diretor, Eleanor Coppola, às vezes
sem o conhecimento dele mesmo, editadas e somadas a entrevistas com atores e
outros envolvidos, gravadas posteriormente, na época do lançamento do documentário,
nos anos 90.
O
que posso dizer? Coppola é um cara corajoso. Depois de receber um “não” de
todos os grandes estúdios de Hollywood, que não queriam financiar um filme
polêmico, o diretor hipotecou a própria casa, pegou o dinheiro e embarcou com
mulher e 3 filhos pequenos para as Filipinas, onde enfrentaram calor, tufão e
guerrilheiros. Além das dificuldades técnicas que surgiam todos os dias, o
cineasta ainda teve que lidar com o infarto de Martin Sheen durante as filmagens, com a incapacidade de Dennis Hopper de lembrar as falas e com
o relaxo de Marlon Brando, que
apareceu para filmar fora de forma e sem ter lido o livro, como Coppola pedira.
É, não deve ter sido fácil.
É
interessante ver como a loucura que acomete os personagens da história também
parece afetar a equipe de filmagens. Vai ver que ficar muito tempo embrenhado
na selva realmente deixa as pessoas meio malucas. Vale uma espiada.
Ah...
assim como “Apocalypse Now”, “O apocalipse de um cineasta” também consta na
lista de #1001 Filmes Para Ver Antes de
Morrer.
Nota:
3,5/5
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