sexta-feira, 22 de julho de 2016

Leia o Livro, Veja o Filme: O Coração das Trevas / Apocalypse Now

LIVRO: O Coração das Trevas

Em retrospecto, o protagonista Charlie Marlow conta a seus amigos ingleses os horrores que testemunhou em uma viagem pela selva africana, mais especificamente no Congo. Desde menino, ela queria explorar o mundo, e conseguiu, por indicação, ser nomeado para o posto de comandante de um navio a vapor de uma companhia de comércio belga.

O desconforto e a atmosfera sombria da história já começam na sala de espera do escritório da companhia, quando Charlie vai assumir seu posto e receber instruções – as duas mulheres enigmáticas que tricotavam sem parar e andavam feito sonâmbulas já são um mau sinal. Pouco depois, é examinado pelo médico, que mede seu crânio, em nome da ciência, e diz que todos que voltam (quando voltam) apresentam mudanças internas. O doutor ainda encerra a consulta com um conselho: “Nos trópicos devemos, antes de qualquer coisa, manter a calma...”.

Bem, Charlie parte em uma embarcação francesa e vai parando em vários entrepostos, antes de finalmente chegar ao seu destino final. Durante a viagem, ele observa, com um misto de fascínio, repulsa, medo e incredulidade, os nativos escravizados, os ataques bélicos desproporcionais dos colonizadores, a imponência da natureza selvagem, a cobiça desmedida dos brancos que cometiam as maiores atrocidades para lucrar com o marfim.

Um dos grandes méritos do livro é a descrição detalhada das cenas presenciadas por Charlie. O autor consegue nos transportar para aquelas paisagens distantes e exóticas – exóticas principalmente se considerarmos que o livro foi publicado em 1902, quando pouco se sabia do quase inexplorado continente africano. A riqueza da ambientação se deve, em grande parte, às experiências do próprio autor, que se aventurou pela África em 1890.

Os nativos são sempre vistos e descritos pelos brancos como selvagens, ignorantes, inimigos, criminosos. No entanto, o que Charlie testemunha contradiz totalmente essa imagem: o que ele vê são pessoas frágeis e doentes morrendo de fome; pessoas que eram submetidas aos piores tratamentos, exploradas, destroçadas e abandonadas; pessoas que nem eram consideradas como tal devido às suas crenças e costumes diferentes. Percebemos no protagonista a estupefação e a indignação muda diante daquela situação. Tudo que ele pode fazer é continuar seguindo em frente para cumprir sua missão.

Quando Charlie finalmente completa seu percurso e encontra Kurtz, enviado tempos antes pela Sociedade Internacional para Supressão dos Costumes Selvagens para produzir um relatório, percebe que está diante de um homem doente e insano, que desobedeceu às instruções recebidas e, em vez de civilizar as tribos, entregou-se à 'selvageria' e passou a ser uma espécie de líder local.

As questões que o livro propõe: Quem é selvagem, afinal? Os nativos ou os colonizadores? E quem é insano? Aquele que abraçou seu lado primitivo e humano, ou os europeus e sua cobiça e violência desmedida?

“De vez em quando, um escaler vindo do litoral nos trazia um contato momentâneo com a realidade. Era remado por nativos negros. Podia-se ver de longe a brancura de seus olhos cintilando. Eles gritavam e cantavam; de seus corpos corria transpiração; os rostos desses camaradas eram como máscaras grotescas, entretanto, eles tinham ossos, músculos e vitalidade selvagens, uma intensa energia de movimento que era tão natural e verdadeira como a arrebentação ao longo da costa. Não precisavam de nenhuma desculpa para estarem ali. Era uma grande satisfação olhar para eles. Por um momento, eu me senti como se ainda pertencesse a um mundo verdadeiramente justo, entretanto, este sentimento não durou muito tempo. Algo surgiria para espantá-lo. Lembro-me de uma vez que nos encontramos com uma nau de guerra fundeada na costa. Não havia sequer um barracão ali, mas ela bombardeava a selva. Parecia que os franceses estavam em guerra por aquelas paragens. Suas insígnias pendiam como trapos de seus mastros; as bocas dos grandes canhões de oito polegadas se lançavam por todo o casco inferior; a maré enlameada e oleosa o erguia e o abaixava indolentemente, oscilando os seus finos mastros. Ele ficava ali, incompreensivelmente disparando contra o continente, diante da imensidão vazia da terra, do céu e da água. Disparando por um de seus canhões de oito polegadas; uma pequena labareda era lançada e desaparecia, uma nuvem branca se dissipava, um pequeno projétil lançava um chiado franzino – e nada acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade naquele procedimento, um sentimento cômico e lúgubre naquela visão toda; e que não se dissipou quando alguém a bordo me assegurou seriamente que lá havia um acampamento de nativos... ele os chamou de inimigos... escondidos ali em algum lugar fora de nossa visão”.

Nota: 4/5

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FILME: Apocalypse Now Redux

O filme de Coppola usa o livro como inspiração, mas transfere a ação para a Guerra do Vietnã, que estava em curso no momento das filmagens. O protagonista passa então a ser o Capitão Willard (Martin Sheen), que é enviado em uma missão secreta pelo Exército Americano para assassinar o Coronel Kurtz (Marlon Brando), que possui uma carreira brilhante, mas que parece ter enlouquecido e se refugiado na selva do Camboja, onde é adorado pela tribo local.

Definitivamente, não gosto de filmes que se passem no campo de batalha. Com “Apocalypse Now” não foi diferente. Eu já havia assistido ao filme anos atrás, mas revi agora, na versão "redux" para comparar com o livro. Resultado: continuo achando um filme mediano e longo demais – o que não quer dizer que não tenha suas qualidades.

A primeira é a ousadia de levar para as telas uma guerra que acontecia naquele exato momento e que era alvo de grande desaprovação por parte dos americanos. O filme não só é ousado nesse sentido como ainda faz duras críticas à forma como os soldados agiam em campo: como um bando de adolescentes com hormônios à flor da pele, dias tediosos e armas potentes nas mãos – o resultado só podia ser desastroso.

Apesar de achar o filme arrastado e chato, não há como ignorar uma das cenas mais icônicas do cinema: aquela em que os helicópteros americanos, sob o comando do Coronel Kilgore (Robert Duvall), sobrevoam uma aldeia ao som de ‘A cavalgada das Valquírias” e lançam bombas em civis, só para que ele e outros militares ianques pudessem surfar. Selvageria pura. A cena inicial, com um Willard delirante em um quarto de hotel em Saigon, também é bem bacana e já á indícios da insanidade crescente que se vê ao longo do filme.

Em todo caso, não funcionou para mim. Gosto mais da versão imperialista do Conrad.

Nota: 3/5

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BÔNUS: Documentário – O Apocalipse de um Cineasta

Como eu disse, não é por não achar o filme uma maravilha que não reconheço os méritos de Francis Ford Coppola e de sua equipe. O documentário “O apocalipse de um cineasta” é muito interessante, e reúne cenas de bastidores de “Apocalypse Now”, feitas pela esposa do diretor, Eleanor Coppola, às vezes sem o conhecimento dele mesmo, editadas e somadas a entrevistas com atores e outros envolvidos, gravadas posteriormente, na época do lançamento do documentário, nos anos 90.

O que posso dizer? Coppola é um cara corajoso. Depois de receber um “não” de todos os grandes estúdios de Hollywood, que não queriam financiar um filme polêmico, o diretor hipotecou a própria casa, pegou o dinheiro e embarcou com mulher e 3 filhos pequenos para as Filipinas, onde enfrentaram calor, tufão e guerrilheiros. Além das dificuldades técnicas que surgiam todos os dias, o cineasta ainda teve que lidar com o infarto de Martin Sheen durante as filmagens, com a incapacidade de Dennis Hopper de lembrar as falas e com o relaxo de Marlon Brando, que apareceu para filmar fora de forma e sem ter lido o livro, como Coppola pedira. É, não deve ter sido fácil.

É interessante ver como a loucura que acomete os personagens da história também parece afetar a equipe de filmagens. Vai ver que ficar muito tempo embrenhado na selva realmente deixa as pessoas meio malucas. Vale uma espiada.

Ah... assim como “Apocalypse Now”, “O apocalipse de um cineasta” também consta na lista de #1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.

Nota: 3,5/5


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