Guylain Vignolles é um cara sem nada
que chame a atenção, além de seu nome estranho que significa algo como “palhaço
feio” e lhe rende inúmeras zombarias desde criança. Aos trinta e poucos anos de
idade, ele leva uma vida monótona e solitária, e seus únicos amigos são seu
peixinho dourado de estimação, Yvon
– o vigia que adora se expressar em versos alexandrinos, e Giuseppe – o ex-funcionário
que teve as duas pernas amputadas por uma falha da enorme máquina de triturar
livros apelidada de A Coisa. Amante
das palavras, Guylain, ao fim do expediente, salva algumas páginas que ficam
presas no fundo da máquina e as guarda em uma pasta para lê-las aleatoriamente em voz alta todos os dias no trem das 6h27. No entanto, um dia ele encontra no vagão um pen
drive e, ao ler os documentos ali armazenados, se encanta pela escrita daquela
autora desconhecida e passa a ter como objetivo conhecê-la.
A
vida do protagonista é um tédio só: do trabalho para casa, de casa para o
trabalho. Diariamente, ele segue a mesma rotina, executa os mesmos movimentos,
realiza suas tarefas com repugnância e dor no coração diante das toneladas de
livros que A Coisa devora e defeca. Até mesmo as leituras que faz
religiosamente no trem – o ponto alto do seu dia – são feitas mais como parte
do ritual, mecanicamente, sem emoção ou interação com os demais passageiros.
Sua solidão fica mais evidente ainda quando se reflete no pobre peixinho
dourado que nada em círculos sem parar.
Guylain
é invisível. Na empresa ele é visto como apenas mais uma peça da engrenagem da
máquina monstruosa; no trem ele não passa de mais um evento cotidiano que tem
hora para começar e acabar. Da primeira vez em que é enxergado e arrancado do
anonimato, ele toma um susto. Não esperava ser abordado pelas duas velhinhas do
lar de idosos que lhe param na rua para elogiar as leituras e pedir que fosse
ler alguns textos para os outros moradores do asilo. Ele ganha, então, uma
individualidade e uma importância e passa a ter algo por que ansiar.
Quando
acha o pen drive, Guylain descobre entre os 72 arquivos com extensão .doc uma
outra pessoa que parecia ser tão solitária e invisível quanto ele: uma moça que
trabalha como zeladora de banheiro em um shopping movimentado da capital
francesa. Perspicaz e com uma capacidade de fazer os comentários mais ácidos,
ela passa os dias limpando a sujeira alheia, aguentando insultos e fingindo ser
imbecil (aliás, ela me lembrou muito a personagem Renée, de ‘A elegância do ouriço’, zeladora de um condomínio de
luxo parisiense que era cinéfila e grande fã de autores russos, mas que fingia
ser ignorante para se encaixar no estereótipo).
Peguei
esse livro para ler porque queria algo leve, tanto no texto quanto no formato
do exemplar, e também porque sabia que se tratava da história de um homem
apaixonado pela leitura. A história, embora simples, é envolvente, mas por trás
da aparente leveza nos apresenta a realidade cruel daqueles que são
considerados cidadãos de segunda classe, dos que realizam serviços que ninguém
quer fazer, de pessoas que já deram seu melhor à sociedade e agora vivem
isoladas e à margem esperando a hora de partir, daqueles que literalmente deram
pedaços de si mesmos às empresas e então foram jogados para escanteio por
perderem a utilidade.
Mas
não é só isso. É uma história sobre o poder transformador e de união da
literatura, sobre dar um sentido à vida, sobre o amor. E tem umas partes bem
engraçadas, como, por exemplo, os "tialogismos" (aforismos da tia da zeladora do banheiro) e um trecho em que Guylain está lendo
no asilo e uma das velhinhas pede para assumir a palavra. Ela continua lendo a
página recolhida ao acaso pelo operador da máquina e ele começa a suar frio
quando percebe se tratar de uma história erótica. Desesperado, tenta
interromper a leitura, mas a senhora continua, empolgadíssima, e, no, fim, os
idosos saem mais felizes do que nunca da sessão. Tive que me segurar para não
começar a rir sozinha no metrô com a descrição da cena.
“O leitor do trem das 6h27” é um livro
curto e delicioso de ler que indico a todos os amantes dos livros e de boas
histórias.
Nota:
4/5
"O homem examinou minuciosamente as folhas que havia tirado de sua bolsa até o trem chegar à estação. Enquanto o vestígio das últimas palavras pronunciadas desvanecia em seu palato, ele observou os outros passageiros pela primeira vez desde que entrara no vagão. Como quase sempre, descobriu decepção em seus rostos, até mesmo tristeza. Isso durou apenas o tempo de um resfolegar. O vagão se esvaziou rapidamente. Na sua vez, ele se levantou. O banco retrátil deu um estalo seco ao se dobrar. Claquete para o fim da cena. Uma mulher de meia-idade lhe disse um discreto obrigada ao pé do ouvido. Guylain sorriu para ela. Como explicar àquelas pessoas que ele não fazia isso por elas? Deixou com resignação a tepidez do vagão, abandonando as páginas do dia. Gostava de saber que estavam lá, delicadamente colocadas entre o assento e o encosto do banco retrátil, longe do tumulto destruidor do qual haviam escapado."
3 comentários:
Quando li Cotoco eu não resistia e gargalhava onde estivesse, mais de uma vez vi gente me olhando esquisito, mas eu não conseguia me controlar.
E O caçador de pipas me fez soluçar (de chorar) dentro do ônibus, imagina as caras de quem via aquela maluquice.
PS. Não resisto quando alguém diz que riu lendo um livro, então esse aí vai para a minha listinha de futuras aquisições.
Concordo completamente.
É um livro curtinho, mas tão cheio de questões. E tudo tratado de maneira tão singela.
B
Bjs!
Marta,
Até que fui bem em não sair gargalhando no meio do vagão. Acho que só fiquei rindo discretamente. Mas quando li "Marley e eu", chorei loucamente no metrô... hahaha
Carissa,
Exatamente. A simplicidade me cativou :)
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