Ao
voltar de viagem, Theodore passa
pelo apartamento de Lelia e a
encontra morta, violentada e mutilada. Desesperado, chama a polícia, que o
interroga e libera, voltando sua atenção para um novo suspeito: Ramón, o outro vértice do triângulo
amoroso que incluía a falecida e Theodore.
Publicado pela primeira vez em 1958, “Um jogo para os vivos”
deve ter chocado muita gente ao expor a relação liberal vivida pelo trio citado
acima. Lelia era uma pintora talentosa, uma mulher bonita e independente, apaixonada tanto por Theodore quanto por Ramón. Eles, por sua vez, não
tinham problemas em dividir o afeto de Leila; pelo contrário: eram melhores
amigos. A relação entre os três parecia perfeita.
Ramón
e Theodore eram completamente opostos: enquanto o primeiro é retratado como o
típico latino atraente, explosivo, católico fervoroso e pobre, Theo é o
estrangeiro alemão, loiro, cético, artista plástico e rico. Assim, a autora usa
as diferenças físicas e de temperamento entre eles para mostrar como se complementavam, e ainda explora as diferenças sociais e de crença da dupla para fazer críticas
ao catolicismo (que vê tudo como pecado) e à frouxidão da polícia mexicana (que
não se empenha muito na investigação, ao contrário do que aconteceria nos
Estados Unidos). Suas observações ácidas são feitas por meio de Theo, que vê as
coisas com o olhar de estrangeiro e, portanto, ‘exime’, de certa forma, a
escritora de suas cutucadas na ferida.
Aliás,
Theo, ao decidir morar no México (que é onde se passa a história), goza de uma
situação muito vantajosa, pois é uma pessoa de posses morando em um local
pobre. Sendo um membro da alta sociedade, ele conta com tratamento diferenciado
ao frequentar os estabelecimentos locais, logo deixa de ser considerado
suspeito do crime (enquanto seu amigo pena para sair da mira da polícia) e
ainda se dá ao luxo de ter acesso direto ao encarregado da investigação (coisa
que jamais aconteceria aos reles cidadãos mexicanos). Mais uma vez, Patricia
aponta para as diferenças de tratamento em um país colonizado que idolatra os
gringos e dá a eles privilégios (algo que parece ser bem comum em toda a América Latina).
O
ponto forte, além do olhar crítico da autora, é a forma de suspense
que ela cria: o psicológico. Theo se tortura por suspeitar do amigo, embora
faça de tudo para lhe dar apoio e provar sua inocência. Ramón, por sua
vez, mesmo depois de ter sido inocentado, continua dizendo que é o assassino em
um tipo de expiação de seus supostos pecados cristãos. Os investigadores, na
verdade, pouco fazem. A relação entre os protagonistas é mais importante que a
resolução do crime. Não é o tipo de história que me deixou tensa, devorando
páginas para descobrir logo o desfecho, mas prendeu minha atenção pelos
questionamentos levantados. Um tipo de suspense diferente do que estou
acostumada.
Este
foi meu primeiro livro da Patricia
Highsmith que, sabe-se lá porque, eu achava que era mais jovem (imaginei
que fosse da mesma época de outra Patricia: a Cornwell). Descobri que seu
primeiro romance, publicado nos anos 50, foi ‘Strangers on a Train’
[Pacto Sinistro], que não foi um sucesso imediato, mas se transformou em campeão
de vendas depois de ser adaptado para a telona por Hitchcock. Nada mau. Seu
personagem mais famoso é Tom Ripley, que estrela 5 histórias
e já ganhou vida em filmes e programas de TV e de rádio.
"O pássaro movia-se mais lentamente agora, esforçando-se como nunca para apoiar as duas garrinhas em duas das escorregadias barras verticais enquanto erguia a porta com o bico. Conseguia levantar a porta quase oito centímetros, o bastante para poder sair se estivesse na parte de baixo da gaiola, mas, assim que tentava descer, tinha que soltar a porta com o bico e se agarrar à outra barra, e a porta se fechava de novo com um som metálico. E o periquito voltava à estaca zero, apoiando energicamente as garras para levantar a porta. Theodore virou-se bruscamente, irritado por ter assistido à cena, que também era ambígua - o pássaro estaria mesmo tentando sair ou seria a porta apenas seu brinquedo favorito? A ambiguidade era o segredo da vida, a chave do universo."
Boa mistura de trama policial e críticas à sociedade e à religião. Recomendo.
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2 comentários:
Nossa, eu fiz o mesmo equívoco que você: achava que se tratava de uma autora "mais jovem"!
ps: estou adorando este mês temático!
Eu também achava que a autora fosse mais jovem (acho até que eu confundia ela com a Patricia Cornwell). Nunca li nada dela, mas tenho bastante vontade. :)
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