Um
dia, cansada de ser odiada pelos humanos e disposta a mostrar a eles o quanto
são ingratos, a morte decide fazer greve. Estupefatas diante da novidade de não
haver mais falecimentos, as pessoas comemoram. Mas a alegria dura pouco. Logo o
caos se instala e é constatado que a morte tinha um papel crucial na sociedade.
Enquanto o governo tenta controlar os cidadãos e acalmar os empresários dos
mais diversos segmentos, a morte reflete, decide negociar e tenta resolver seus
próprios problemas existenciais.
Embora
esse não tenha sido o primeiro livro que li a abordar o sumiço da morte e suas
desastrosas consequências para a humanidade (Orígenes Lessa já havia cogitado essa hipótese em 'A Desintegração da Morte', em 1948),
foi uma experiência interessante ver como outro escritor enxergou o tema.
De
fato, Saramago trilha um caminho bem
parecido com o do Lessa (pelo menos no início da história): a falência dos
cemitérios e casas funerárias; o colapso dos hospitais; o impasse das
companhias de seguro; a superlotação das casas de repouso; a perda da função
das religiões. Como essas áreas estão intrinsecamente ligadas à morte, são as
mais afetadas e as que, em pânico, cobram providências do governo. No entanto,
o autor português foca menos na capacidade de adaptação dos seres humanos e em
seu senso destrutivo e mais na censura aos governos, à indústria e às
religiões.
Uma
das peculiaridades da protagonista criada por Saramago é que ela não é “A
Morte” com M maiúsculo, e sim “uma
morte”, que atua em um nicho específico e em uma região determinada (apenas
em um país – Portugal). Então, quando as pessoas doentes e agonizantes, que são
impedidas de morrer devido ao sumiço da morte, descobrem que no país vizinho as
pessoas continuam a passar desta para melhor, cria-se uma rede clandestina de
atravessadores de fronteira (o que envolve um esquema corrupto com o
aval do governo).
A
confusão, que parecia prestes a ser solucionada quando a morte concorda em
voltar ao trabalho, aumenta ainda mais com a decisão de notificar as pessoas com
antecedência sobre suas mortes. Se até o momento em que a ceifadora de vidas
retoma suas atividades eu estava achando a história boa, quando passamos a
acompanhar os dilemas da morte o
livro salta de bom para ótimo.
Até
então o escritor havia retratado situações possíveis do jeito engraçado e
crítico que lhe é peculiar, e, quando passou a mostrar uma morte humanizada,
cheia de sentimentos e dúvidas, me arrebatou. Talvez porque eu não esperasse
essa mudança de perspectiva, talvez porque eu ainda comparasse
involuntariamente “As Intermitências da
Morte” com o livro do Lessa, talvez porque o toque de fantasia fosse
realmente inusitado... O fato é que me surpreendeu e se tornou mais um dos meus
favoritos do autor.
“Em
geral crê-se que a morte, sendo, como gostam de afirmar alguns, a cara de uma
moeda de que deus, no outro lado, é a cruz, será, como ele, por sua própria
natureza, invisível. Não é bem assim. Somos testemunhas fidedignas de que a
morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em companhia de
uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a perguntas, rodeada de paredes
caiadas ao longo das quais se arrumam, entre teias de aranha, umas quantas
dúzias de ficheiros com grandes gavetões recheados de verbetes. Compreende-se
portanto que a morte não queira aparecer às pessoas naquele preparo, em
primeiro lugar por razões de estética pessoal, em segundo lugar para que os
infelizes transeuntes não se finem de susto ao darem de frente com aquelas
grandes órbitas vazias no virar de uma esquina. Em público, sim, a morte
torna-se invisível, mas não em privado, como o puderam comprovar, no momento
crítico, o escritor marcel proust e os moribundos de vista penetrante. Já o
caso de deus é diferente. Por muito que se esforçasse nunca conseguiria
notar-se visível aos olhos humanos, e não é porque não fosse capaz, uma vez que
a ele nada é impossível, é simplesmente porque não saberia que cara pôr para se
apresentar aos seres que se supõe ter criado, sendo o mais provável que não os
reconhecesse, ou então, talvez ainda pior, que não o reconhecessem eles a ele.
Há também quem diga que, para nós, é uma grande sorte que deus não queira
aparecer-nos por aí, porque o pavor que temos da morte seria como uma
brincadeira de crianças ao lado do susto que apanharíamos se tal acontecesse.”
É
divertido, reflexivo, ácido, crítico... e também uma história de amor. Tem como
não gostar?
Esta leitura faz parte do Projeto Ler Saramago, criado pela Cláudia, do blog A Mulher que Ama Livros, que consiste em ler todos os romances do autor português em ordem cronológica. Eu estou trapaceando e lendo fora de ordem, mas enfim...
Para ver todos os posts do Saramago deste blog, clique AQUI.
4 comentários:
Oi, Mi
Já tentei ler duas vezes e não sei porque abandonei, apesar de estar gostando do livro. Vai entender.
Na próxima tentativa vou procurar o do Lessa também.
Não li ainda e agora fiquei ainda mais curiosa!
Adorei a resenha Mi!
Bjks mil
Bom Noite!
Sou seguidor do seu blog, muito interessante. Já coloquei você na minha
lista de blog recomendado.
Estou com um blog também de História chamado Ametista de Clio
http://ametistadeclio.blogspot.com.br/
você poderia ajudar a divulgar, meu blog, colocando também na sua lista de blog
recomendado?
Obrigado pela atenção
Jairo Alves
Historiador e Editor do Blog Ametista de Clio!
Marta,
Hahaha... vai entender! Às vezes começo a ler um, estou gostando, mas outro se intromete e o primeiro acaba ficando meio abandonado. De qualquer forma, recomendo a leitura do Saramago e do Lessa ;)
Clau,
Acho que você vai gostar, viu?
Postar um comentário