segunda-feira, 24 de março de 2014

Resenha: A Besta


Duas garotinhas são encontradas mortas, violentadas e espancadas em um porão. Quatro anos depois, o assassino das meninas foge da prisão. Com um passado de crimes semelhantes, a polícia sabe que é só uma questão de tempo até o monstro atacar mais alguma criança. Infelizmente, os esforços policiais não são suficientes para impedir mais uma morte. A indignação da população é amplificada pela cobertura sensacionalista do caso e uma caçada à besta é iniciada. Como controlar a raiva daqueles que se sentem abandonados pelas autoridades? Como aliviar a dor de um pai que acabou de reconhecer sua filha no IML com estratégias de busca?

O livro levanta muitas questões importantes para as quais não há consenso e, desde o início, já dá mostras de que o desfecho da história fatalmente será trágico e nem totalmente satisfatório. De modo envolvente, a dupla de escritores Roslund e Hellström apresenta ao leitor uma situação por si só revoltante: uma série de crimes sexuais contra crianças. Para piorar, eles revelam as falhas dos sistemas judiciário e carcerário, que, mesmo diante de uma pessoa com histórico de crimes do mesmo tipo e atestado psiquiátrico que comprova seu desequilíbrio, não conseguem manter o culpado preso e que, dentro das prisões, não conseguem manter a integridade do interno.

Com a crescente sensação de impunidade, não é de se espantar quando a população decide fazer justiça com as próprias mãos, tendo como exemplo um pai justiceiro que foi inocentado pelo júri e se transformou em herói. É muito fácil se identificar com a revolta pública mostrada do livro e, em certos momentos, é impossível não torcer por eles, não desejar estar lá para dar o exemplo também. Após a contínua repetição de atrocidades sem a condenação adequada, é compreensível a aceitação da política de "olho por olho, dente por dente". Claro que isso é moralmente inaceitável, mas é complicado não pensar assim quando nos sentimos totalmente desprotegidos por aqueles que deveriam zelar por nossa segurança. A reflexão proposta é exatamente essa: o que diferencia o assassino da garota dos habitantes que saíram caçando criminosos por conta própria? Em que momento eles deixaram de ser vítimas e se transformaram em monstros?

Um dos personagens mais bacanas do livro é o jovem advogado Lars Ågestam, ávido por conseguir um caso de grande projeção que pudesse alavancar sua carreira. Ao ser designado para o caso do pai justiceiro, Lars de fato consegue ficar sob os holofotes, mas também se vê pela primeira vez diante de um dilema: culpar o réu severamente para mostrar que todos os crimes são igualmente puníveis ou inocentá-lo devido às circunstâncias? Cumprir rigorosamente a lei significava ir contra a opinião popular (que já estava bem exaltada); aliviar a pena seria como dar o aval para a barbárie – o que fazer? Como Lars logo percebe, nem toda fama é boa.

A estrutura do livro é bem parecida com a de outras obras suecas que li, com a introdução de todos os personagens antes do início da ação propriamente dita. Parágrafos do criminoso são intercalados com a visão das primeiras vítimas, dos policiais, de outro prisioneiro, do pai da última menininha morta. Pode parecer meio confuso à primeira vista, já que não há diferenciação tipográfica nem percepção imediata de quem é quem, mas aos poucos conseguimos identificar os atos de cada um. O uso dessa estrutura torna a leitura um pouco mais lenta nas primeiras páginas, mas, assim que a ação começa, não há respiro. Eu já fui fisgada logo nas primeiras 15 páginas e a tensão só aumentou durante a leitura. Foi um ótimo primeiro contato com a escrita de Roslund e Hellström.

Outra característica que eu já tinha observado em livros suecos é a forte crítica ao circo criado pela mídia. De diferente, notei que a trama de ‘A Besta’ se desenrola no escaldante verão escandinavo, que acaba se tornando um personagem importante, sendo tão ou mais opressivo que as gélidas e cinzentas paisagens que seriam esperadas nesse cenário. Como peculiaridades da escrita, destaco sequências de palavras repetitivas ou alinhamento de vários adjetivos sem vírgulas e uso de linguagem vulgar e termos e gírias de cadeia – o que ajuda a criar o clima pesado, mas pode incomodar alguns leitores.

Anders Roslund é um premiado jornalista sueco. Börge Hellström é um ex-criminoso que atualmente se dedica a reabilitar jovens delinquentes e viciados. ‘A Besta’ é o primeiro trabalho da dupla e ganhou o The Glass Key 2004 (prêmio escandinavo de melhor livro policial) e o The Gold Pocket Award 2005 (mais vendido no formato brochura).

“O ser humano é o único mamífero que aniquila a si mesmo. Um ser humano pode odiar outro, pode assassinar outro, um ser humano pode arriscar a existência de toda a espécie, o ser humano é um animal diabólico – o único – com essa autodestrutividade, é assim e nós nunca poderemos entender.”

Um livro que dá raiva, nojo, tristeza, mas que é impossível de largar. Recomendadíssimo!

Este post faz parte do Desafio Literário Skoob 2014 - Mês de Março: Suspense. Para ver a lista de obras selecionadas e outros posts do DLSkoob2014, clique AQUI. 

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6 comentários:

Hannah disse...

Ai, ai, ai, só vc Michelle para fazer a minha lista de desejados aumentar, kkkkkk.
ADorei a resenha e fiquei bem interessada no livro. Vou procurar! :)

Bjs

Flávia disse...

Noss! Gostei bastante, principalmente da parte da fraqueza do Sistema Judiciário. Vou colocar como desejado. Nunca li, que eu lembre, algo sueco.
Resenha excelente, esclarecedora na medida.
Beijos

Eliana Lee disse...

Menina... que livro é esse? rs Ao mesmo tempo que fiquei com vontade de ler, fiquei meio assustada de pensar na narrativa inteira...

Maria Silvana Santana disse...

Oiee ;)
apesar da tua resenha ótima, não quero ler o livro por ser muito forte, sou fraca para leitura sério, e o assunto é tão real e presente no nosso dia a dia que fico até triste só em pensar :/
Beliscões da Máh♥
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Michelle disse...

Hannah,
Acho que você vai gostar, viu?

Flávia,
Suecos são mestres do suspense. Meus favoritos atualmente.

Eliana,
É muito incômodo, mas igualmente envolvente.

Maria,
É triste. Muito. Mas acho importante encarar a realidade às vezes. Faz a gente questionar algumas coisas.

Lais Ribeiro disse...

Olá Michelle

Acabei de ler o livro no LV e vim conferir sua resenha, que por sinal está ótima.

O livro realmente levanta muitas questões importantes, questões para as quais ainda procuro a resposta dentro de mim. Pra mim a questão mais importante que o livro deixou é:Quem é a Besta?
Também adorei o Lars Ågestam, fiquei curiosa pra saber como ele reagiu ao ocorrido no final.

Esse livro é o primeiro da série Sundkvist e Grens, e eu comprei já tem um tempo em uma feira do livro o segundo volume, Box 21. Em breve vou lê-lo.

As peculiaridades da escrita, como você descreve na resenha, me incomodaram um pouco, mas com a leitura foi possível se acostumar.