segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

[Do fundo do baú] Resenha: A Maçã Envenenada


Um livro que traz na capa pessoas fazendo stage diving. Uma história de amor em todas as suas fases vivenciada nos anos 90, com direito a um capítulo especial no dia do show do Nirvana no Morumbi, em São Paulo. 'Drain You' como música-tema e inspiração do título. Como não querer ler “A Maçã Envenenada”?

OK, nem todo mundo compreende o apelo de todas as coisas que citei no parágrafo anterior, mas acredito que para os fãs de rock, principalmente aqueles que, como eu, passaram a adolescência suando em camisas de flanela na época em que o grunge estourou, o interesse pelo livro seja imediato. No entanto, enfatizo que a história NÃO se destina apenas a esse público. Qualquer leitor que aprecie uma trama mais realista vai ter uma ótima leitura.
A história é narrada por um jovem sem nome que avança e retrocede no tempo para contar como nossas escolhas, até as mais simples, influenciam nosso futuro. No caso do narrador, tudo começou a mudar no dia em que conheceu Valéria, uma garota diferente e intensa que vira o mundo do rapaz de cabeça para baixo. Para ele, as coisas passam a ser divididas em “antes de Valéria” e “depois de Valéria”.

Por causa dela, o narrador pondera sobre sair do quartel sem autorização para assistir ao show do Nirvana de 93. Ainda por causa dela, ele quase morre em um acidente. Para fugir dos efeitos nocivos dela, ele vai para Londres, onde fica sabendo do suicídio de Kurt Cobain, um ano depois. Em um momento de reflexão, decide abandonar de vez a faculdade de direito e, de volta ao Brasil, começa a trabalhar como jornalista.

E é então que uma outra personagem crucial aparece na história: Immaculée Ilibagiza, estudante de engenharia em Ruanda, em 1994, que se transformou em escritora e palestrante após sobreviver à horrenda guerra civil que atingiu seu país e dizimou sua família. Depois de passar 90 dias escondida em um banheiro com mais sete mulheres, a vida da garota se transformou e, mesmo tendo todos os motivos do mundo para odiar seus agressores, ela os perdoou. [resenhei o livro da Immaculée AQUI]

O caminho de ambos se cruza quando ele é designado para entrevistá-la. Aturdido diante de um exemplo de bondade e perseverança de uma pessoa que sofreria muito menos caso se entregasse à morte, mas que preferiu lutar e se agarrar ao fiapo de vida que lhe restava, o narrador começa a pensar em outras pessoas que marcaram sua trajetória, que tinham muitas opções de caminho à sua frente, mas que, seja lá por qual motivo, decidiram abraçar e morte e sair de cena. Pelos olhos dele, percebemos o peso das escolhas extremas na vida de quem toma tais decisões e na de quem as cerca.

Eu achei a escrita do Michel Laub muito envolvente. Simples e direta, porém interessante. A narrativa não-linear nos faz entrar na cabeça do narrador, como se estivéssemos acompanhando o fluxo de pensamentos que ora relembra o passado, ora reflete sobre o futuro. O papel de Immaculée na trama não é muito claro no início, mas aos poucos vamos entendendo sua importância e percebemos como ela é a chave de tudo.

A ambientação foi outro ponto que me agradou bastante, já que uma parte da história se passa em São Paulo. Adoro quando sou capaz de reconhecer as ruas e estabelecimentos citados. E, neste caso, não apenas os locais físicos, mas também o clima, o comportamento das pessoas, o estilo musical dos personagens, tudo é extremamente familiar para mim. Eu poderia, de fato, ter conhecido essas pessoas, ter andado com elas, ter ido ao show com a turma delas.

Confesso que nunca fui fã do Nirvana enquanto a banda existia. Só comecei a ouvir o som deles depois da morte do Cobain. E nunca tinha prestado atenção à letra de 'Drain You'. Claro que ela pode ter diversas interpretações, mas acho que sua escolha para nomear o livro e representar a relação entre Valéria e o narrador é perfeita: um amor doentio em que uma pessoa quer sugar a outra até a morte.

“Entre a noite no bar Independência e a vinda do Nirvana a São Paulo foram onze meses. Comparar o dia anterior ao primeiro encontro com Valéria e o posterior ao show é como falar de tempos diversos, mundos contrários em si. De Valéria eu também não guardei fotos, nem uma peça de roupa, nem uma fita com alguma música da banda, mas é como se ela continuasse com dezoito anos num presente eterno, e cada vez que vejo os vídeos do Morumbi eu sei que ela está lá, nas trevas entre as primeiras filas, logo adiante de onde filmaram a entrada de Kurt Cobain em meio à luz azul".

Nota: 4/5

Para matar a saudade, a execução de 'Drain You' no Hollywood Rock, em 93:
[Post editado. Veja AQUI o texto originalmente publicado em 05/12/2013 no ConversaCult]

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