quarta-feira, 8 de março de 2017

Resenha: O Buda no Sótão


‘O Buda no sótão’ cobre o período de uma onda de imigração japonesa para os Estados Unidos por volta de 1900 até o desaparecimento em massa desses imigrantes na época da Segunda Guerra. Em uma narrativa composta por uma mistura de vozes, Julie Otsuka fala sobre a experiência das noivas japonesas que chegavam à terra do Tio Sam para se casar com maridos que não conheciam, sobre o duro trabalho nas plantações, sobre a saudade da pátria e dos familiares, sobre sonhos e decepções.

Eu, nós, elas... todas mulheres. A reconstrução da memória das imigrantes japonesas é feita de forma coletiva, reforçando a vivência de grupo, a repetição dos padrões, os horrores comuns ao sexo feminino. Já no navio, elas sofrem em porões escuros, apertados, úmidos e fedorentos. Têm que lidar com a fome, o enjoo, a saudade de casa, os ataques dos marinheiros. Mas o sonho de um recomeço em uma terra distante, com um marido e uma chance de constituir família, mantinha a esperança das noivas.

Só que, ao chegarem ao porto, vem a primeira decepção: os futuros esposos não eram tão jovens quanto nas fotos, vestiam trajes surrados e provavelmente os poemas e cartas enviados às noivas nem haviam sido escritos por eles. O terror das esposas começa assim que desembarcam, com noites de núpcias na maioria das vezes violentas, com homens estranhos e, não raro, bem mais velhos que elas.

Ensinadas a vida inteira a serem cordiais, silenciosas e invisíveis, as japonesas apenas juntam seus cacos, sorriem discretamente e assumem seus papéis de donas de casas, esposas, mães e trabalhadoras incansáveis ao lado dos maridos nas lavouras. Colonos diligentes, eficazes, pacíficos e de baixo custo: o que mais os donos de terras americanos poderiam querer?

Com trabalho árduo, os japoneses tiveram êxito na América e em algumas décadas depois já deixavam o campo para trabalhar em suas lojas. Os vizinhos americanos gostavam dos serviços dos orientais, contratavam as mulheres como empregadas e babás, os homens como jardineiros, compravam em seus estabelecimentos. Parecia que, enfim, que o futuro prometido de prosperidade havia chegado. Até a eclosão da Segunda Guerra, que deu início à perseguição dos imigrantes japoneses e seus filhos.

Mais do que a história que contei resumidamente acima, o que mais impressiona no livro é a escrita da autora, que cria relatos de sofrimento que arrastam o leitor para a vida daquelas mulheres. Enviadas para um país longínquo e estranho pelos próprios pais para se casar com homens que nunca viram, elas enfrentam a exploração nas plantações, sofrem com um clima quente, com a comida diferente, com a língua que muitas jamais aprendem. Quando os filhos crescem, elas mal conseguem se comunicar com eles, já alfabetizados em inglês, e são motivo de vergonha para seus descendentes. Quando finalmente achavam que a velhice seria mais tranquila, vem a guerra e um novo pesadelo. É triste demais, gente.

‘O Buda no sótão’ foi um dos meus livros favoritos de 2016, mas só agora consegui escrever sobre ele. Obviamente, não sou capaz de transmitir toda a beleza da obra. Mas deixo aqui a dica e a forte recomendação de leitura. E aproveito para agradecer a Lígia, do Randomicidades Aleatórias, que me deu o livro. Tem resenha dela AQUI.

“Eu tinha treze anos e nunca havia olhado um homem nos olhos. Eles nos possuíram cheios de pedidos de desculpas pelas mãos ásperas e calejadas, e então soubemos de imediato que eram fazendeiros, não bancários. Nos possuíram cheios de prazer, por trás, enquanto nos inclinávamos nas janelas para admirar as luzes da cidade ao longe. ‘Está feliz agora?’, nos perguntavam. Eles nos amarraram e nos possuíram com rostos colados em carpetes puídos que cheiravam a ratos e mofo. Nos possuíram intensamente em cima de lençóis com manchas amareladas. Nos possuíram facilmente e com um mínimo de esforço, porque algumas de nós já haviam sido possuídas muitas outras vezes. Nos possuíram em meio à bebedeira. Eles nos possuíram sem cuidado algum, sem preocupação alguma, sem qualquer pensamento em relação à nossa dor. Eu achei que meu útero ia explodir. Eles nos possuíram apesar de apertarmos as pernas umas contra as outras, dizendo: ‘Por favor, não'. Nos possuíram com cuidado, como se tivessem medo de nos quebrar. Você é tão pequena. Nos possuíram com frieza, mas com conhecimento – Em vinte segundos você vai perder o controle –, e então soubemos o que muitas outras haviam passado antes de nós.”

Nota: 5/5

Leitura relacionada:
- Corações Sujos (Fernando Morais) [sobre o efeito da 2ª Guerra nos imigrantes japoneses no Brasil]

4 comentários:

Pipa disse...

Eu adoro esse livro! É demais!
O outro dela, Quando o imperador era divino, também é maravilhoso.

um beijo,
Pipa

Ingrit Tavares disse...

Adorei a dica!! Entrou pra lista de leituras! Vi que vc linkou ele ao Corações Sujos. Como eu trouxe ele aqui pro Canadá, vou antecipar a leitura do livro do Fernando Moraes e depois procuro o Buda no Sotão na biblioteca.
Bjs!!

Claudia Leonardi disse...

Estou doida pra ler este livro!!
Adorei o post Mi
Bjs

Michelle disse...

Pipa,
Sua resenha foi uma das responsáveis por meu interesse nesse livro, então... 'obrigada'! Quero conhecer outros trabalhos da Julie.

Ingrit,
Acho interessante como os dois livros mostram a situação dos imigrantes japoneses em países diferentes na época da Segunda Guerra. Depois conte o que achou ;)

Claudia,
Acho que você vai gostar. Já separei aqui para te emprestar :)