O
velho Tuahir e o jovem Muidinga caminham sem destino certo por
paisagens devastadas pela guerra. A única certeza que têm é que não podem
parar, pois se tornariam alvos fáceis dos bandos que aterrorizam e exploram
sobreviventes que já vivem com medo e nada têm a oferecer. A esperança de
encontrar algo melhor mais adiante e a força inexplicável para continuar
vivendo servem de combustível para seus corpos magros, frágeis e cheios de
marcas. Em meio a toda a desolação, eles encontram abrigo em um ônibus abandonado
e parcialmente queimado, e alívio para suas almas tristes nas aventuras
registradas em cadernos por um certo garoto chamado Kindzu.
Muidinga
foi resgatado de uma vala do campo de refugiados já quase sem vida pelo
incansável Tuahir. Unidos na desgraça, eles passam a vagar juntos: o menino
ganha uma nova chance de viver e um ‘pai’ ranzinza que se recusa a ser chamado
como tal (embora, no fundo, adore o tratamento); o velho ganha uma companhia
para seus dias solitários. Muidinga é quem acha os cadernos e cria um ritual de
leitura todas as noites, contra a vontade do outro. Conforme os dias avançam,
as dificuldades aumentam, a fome aperta e a morte ronda, aqueles momentos de
divagação se tornam fundamentais. E, como vamos percebendo aos poucos, os personagens
da narrativa de Kindzu se mostram mais ligados aos dois caminhantes do que eles
imaginavam.
Alternadamente
com história de Muidinga e Tuahir, acompanhamos a saga de Kindzu, que é cheia
de fatos surreais, tristes e poéticos. Seu irmão mais novo, por exemplo, vira
galinha. A mãe teve uma gravidez que durou anos. O pai, bêbado e sonhador, em
determinado momento morre, mas tenta fazer contato com Kindzu lá do além. O
amigo indiano tem sua loja saqueada e queimada e aconselha Kindzu a ir embora.
Seu antigo professor é assassinado pelos bandidos. Diante de tantas tragédias,
Kindzu decide partir com a intenção de se tornar um naparama, guerreiro
tradicional, blindado por feitiço, que lutava contra aqueles que impunham a
guerra.
No
entanto, sua jornada não é fácil e em seu caminho surgem muitos desvios e
personagens que lhe roubam tempo e atenção, mas que também lhe transmitem
ensinamentos valiosos e o fazem enxergar com mais clareza. Como um legítimo
herói, ele enfrenta todas as dificuldades para chegar ao seu destino - que não era bem o que ele tinha em mente no início.
Sempre
ouvi maravilhas sobre os livros do Mia
Couto e tinha muita vontade de conhecer sua escrita. É claro que minhas expectativas eram altas, e medo de me decepcionar maior ainda, mas felizmente isso não aconteceu. O que
encontrei nas páginas de “Terra
Sonâmbula” foi uma história tocante e triste, que apresenta personagens
massacrados pelo clima, pela guerra, por doenças e pela maldade pura e simples.
Mesmo assim, não deixam de sonhar e de ter esperanças.
Uma
característica marcante é o uso de linguajar simples e regional, o que
contribui muito para a bonita sonoridade que dá um sabor especial à trama.
Outra coisa que reparei é a importância das cores nas descrições de paisagens,
refletindo as sensações e o ânimo dos personagens. As tradições também marcam
presença, o que, invariavelmente, retrata alguns tabus e crenças nada benéficos
para as mulheres.
“Naquele
lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se
arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçava de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas
pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao
chão, em resignada aprendizagem da morte.”
Foi
uma leitura deliciosa. Já quero ler
outros livros do Mia. Recomendo!
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Aproveito para convidá-los para o Clube de Leitura Penguin-Companhia
5 comentários:
Adorei sua resenha Michelle!Mia Couto é maravilhoso, já li alguns! Meus preferidos são A Confissão da Leoa e O Último Voo do Flamingo!
Eu amei o livro! E adorei sua resenha.
Tbe tive as mesmas impressões que vc.
É o meu preferido do Mia. Acabei o livro exclamando: -Não Acredito!
Tenho outro dele, se vc quiser ler
Obrigada por compartilhar o evento!
Bjks mil
www.blogdaclauo.com
Sua resenha ficou incrível, Michelle! <3
Eu não senti tanto a importância das cores em "Um Rio Chamado...", então talvez essa seja uma característica desse livro em especial, em que a paisagem, o cenário, parece ter um lugar de destaque.
Já essa sonoridade, essa linguagem regional e simples pelo visto é a marca registrada do Mia, né?
Estou querendo ler Terra Sonâmbula em breve, nos próximos meses.
Beijo! ^_^
Foi esse que a Juliana, do Fina Flor, te deu? Apesar de não ter amado, assim como você achei o livro de uma tristeza poética que toca fundo na alma.
Gostei muito da tua resenha. Lerei este livro. ;)
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