quinta-feira, 4 de junho de 2015

Resenha: Terra Sonâmbula


O velho Tuahir e o jovem Muidinga caminham sem destino certo por paisagens devastadas pela guerra. A única certeza que têm é que não podem parar, pois se tornariam alvos fáceis dos bandos que aterrorizam e exploram sobreviventes que já vivem com medo e nada têm a oferecer. A esperança de encontrar algo melhor mais adiante e a força inexplicável para continuar vivendo servem de combustível para seus corpos magros, frágeis e cheios de marcas. Em meio a toda a desolação, eles encontram abrigo em um ônibus abandonado e parcialmente queimado, e alívio para suas almas tristes nas aventuras registradas em cadernos por um certo garoto chamado Kindzu.

Muidinga foi resgatado de uma vala do campo de refugiados já quase sem vida pelo incansável Tuahir. Unidos na desgraça, eles passam a vagar juntos: o menino ganha uma nova chance de viver e um ‘pai’ ranzinza que se recusa a ser chamado como tal (embora, no fundo, adore o tratamento); o velho ganha uma companhia para seus dias solitários. Muidinga é quem acha os cadernos e cria um ritual de leitura todas as noites, contra a vontade do outro. Conforme os dias avançam, as dificuldades aumentam, a fome aperta e a morte ronda, aqueles momentos de divagação se tornam fundamentais. E, como vamos percebendo aos poucos, os personagens da narrativa de Kindzu se mostram mais ligados aos dois caminhantes do que eles imaginavam.

Alternadamente com história de Muidinga e Tuahir, acompanhamos a saga de Kindzu, que é cheia de fatos surreais, tristes e poéticos. Seu irmão mais novo, por exemplo, vira galinha. A mãe teve uma gravidez que durou anos. O pai, bêbado e sonhador, em determinado momento morre, mas tenta fazer contato com Kindzu lá do além. O amigo indiano tem sua loja saqueada e queimada e aconselha Kindzu a ir embora. Seu antigo professor é assassinado pelos bandidos. Diante de tantas tragédias, Kindzu decide partir com a intenção de se tornar um naparama, guerreiro tradicional, blindado por feitiço, que lutava contra aqueles que impunham a guerra.

No entanto, sua jornada não é fácil e em seu caminho surgem muitos desvios e personagens que lhe roubam tempo e atenção, mas que também lhe transmitem ensinamentos valiosos e o fazem enxergar com mais clareza. Como um legítimo herói, ele enfrenta todas as dificuldades para chegar ao seu destino - que não era bem o que ele tinha em mente no início.

Sempre ouvi maravilhas sobre os livros do Mia Couto e tinha muita vontade de conhecer sua escrita. É claro que minhas expectativas eram altas, e medo de me decepcionar maior ainda, mas felizmente isso não aconteceu. O que encontrei nas páginas de “Terra Sonâmbula” foi uma história tocante e triste, que apresenta personagens massacrados pelo clima, pela guerra, por doenças e pela maldade pura e simples. Mesmo assim, não deixam de sonhar e de ter esperanças.

Uma característica marcante é o uso de linguajar simples e regional, o que contribui muito para a bonita sonoridade que dá um sabor especial à trama. Outra coisa que reparei é a importância das cores nas descrições de paisagens, refletindo as sensações e o ânimo dos personagens. As tradições também marcam presença, o que, invariavelmente, retrata alguns tabus e crenças nada benéficos para as mulheres.

“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçava de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.”


Foi uma leitura deliciosa. Já quero ler outros livros do Mia. Recomendo!

Este post faz parte do Desafio Literário Skoob 2015 - Mês de Maio: Livros originalmente escritos em português. Para ver a apresentação do desafio, minha lista de obras selecionadas e outros posts do DLSkoob2015, clique AQUI. 

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Aproveito para convidá-los para o Clube de Leitura Penguin-Companhia


5 comentários:

Unknown disse...

Adorei sua resenha Michelle!Mia Couto é maravilhoso, já li alguns! Meus preferidos são A Confissão da Leoa e O Último Voo do Flamingo!

Claudia Leonardi disse...

Eu amei o livro! E adorei sua resenha.
Tbe tive as mesmas impressões que vc.
É o meu preferido do Mia. Acabei o livro exclamando: -Não Acredito!
Tenho outro dele, se vc quiser ler
Obrigada por compartilhar o evento!
Bjks mil

www.blogdaclauo.com

Eduarda Sampaio disse...

Sua resenha ficou incrível, Michelle! <3
Eu não senti tanto a importância das cores em "Um Rio Chamado...", então talvez essa seja uma característica desse livro em especial, em que a paisagem, o cenário, parece ter um lugar de destaque.
Já essa sonoridade, essa linguagem regional e simples pelo visto é a marca registrada do Mia, né?
Estou querendo ler Terra Sonâmbula em breve, nos próximos meses.
Beijo! ^_^

Anônimo disse...

Foi esse que a Juliana, do Fina Flor, te deu? Apesar de não ter amado, assim como você achei o livro de uma tristeza poética que toca fundo na alma.

Nivanio JB disse...

Gostei muito da tua resenha. Lerei este livro. ;)