“Eu
os conheço a todos. Reconheço-os pelas pisadas e por elas sei de seus humores,
de seus sentimentos, de suas urgências, preguiças, de seu contentamento ou
aflição. Sei de sua grandeza e mesquinhez. Leio seus passos quando apenas roçam
minhas lajes em corridas alegres de pés pequenos ou quando me oprimem com o
peso de vidas inteiras. Foi seu tropel incessante que me despertou do meu sono
de pedra. Só eu os conheço a todos porque só eu estou sempre neles como eles
estão em mim. Eles
me criaram e agora eu os crio. Quero-os como são porque quando eles deixarem de
ser, tampouco eu serei. Não os posso fazer como eu os quisera, sempre formosos,
felizes, generosos e livres, mas como mãe os crio, tais quais me vieram
acolho-os. Sou seu chão, vejo tudo e não os julgo, sei apenas que são humanos e
me comovem. Pela linguagem de seus pés, vou desenleando suas histórias uma a
uma. Vivem eles mesmos, a vida toda, a narrar, narrar-se, passado, presente e
futuro. Meus ouvidos de terra, pedra e cal ouvem, e aprendo. Creio ter
compreendido que nisto consiste o serem humanos, em poderem ser narrados, cada
um deles, como uma história.”
Com
o trecho acima, começa “Vasto Mundo”,
livro de estreia de Maria Valéria
Rezende, escritora que só descobri porque ganhou, com outra obra (“Quarenta Dias”), a última edição do Prêmio Jabuti de Melhor Romance. E então fiquei com vontade de ler o livro vencedor, mas tinha na fila de leitura títulos de clubes de livro de que participo,
mais alguns de desafios literários e projetos pessoais e ainda outros de um
curso que estava fazendo – resultado: bateu uma forte ressaca literária e
travei. Resolvi, então, começar a ler “Vasto Mundo”, porque era uma forma de
conhecer a escrita da autora e porque eram contos curtinhos, o que sempre ajuda
nos momentos de incapacidade de concentração. Felizmente para mim, fiquei tão
encantada com as histórias e com os personagens que maldição da ressaca
literária passou!
O
cenário de todas as histórias é o povoado fictício de Farinhada, na Paraíba, e
nas imediações. Ali naquele cafundó, o tempo escoa devagar, a rotina não parece
incomodar, as pessoas são pacíficas e a vida segue seu curso sem grandes
turbulências. Não que seja um lugar livre de problemas; o dia a dia é uma batalha
constante para botar comida na mesa, para conseguir melhorias mínimas junto ao patrão,
para fazer valer seus escassos direitos.
Apesar
de retratar as dificuldades do povo valente de Farinhada e de fazer duras
críticas à organização social e política do país, em momento algum o texto soa
ostensivamente panfletário. Pelo contrário, o foco, como indica o trecho que
inicia este post, são as pessoas e suas individualidades, suas narrativas e
como elas se entrelaçam para contar a história de um povoado inteiro.
A
linguagem simples que se aproxima da oralidade ajuda a criar uma empatia com os
personagens, e narrador está sempre tão próximo dos protagonistas que às vezes é
impossível saber se o que nos é mostrado é a visão de um ou do outro. A
sensação que tive ao adentrar o universo criado por Maria Valéria nesse livro
foi de voltar à infância e reencontrar a magia nas páginas de “O Sítio do
Pica-pau Amarelo”. Minha memória puxou ainda personagens míticos criados por
Jorge Amado (pelo menos o que conheço pela versão eternizada pelas novelas da Globo). Fato é
que me envolvi tanto que, quando percebi que já estava no fim da leitura,
comecei a enrolar para que não acabasse de vez.
Por
ser um livro delicioso que resgata sentimentos da infância e cura ressaca
literária, mais que recomendo a leitura!
Nota: 5/5
2 comentários:
Uau!
Li "Quarenta Dias" e amei também, me apaixonei pela protagonista-narradora.
Estou com Vasto Mundo no kindle e já quero pegar pra ler.
Parece que ambos exploram essa abordagem social, coloquialidade e personagens carismáticos.
Como estou lendo noventa coisas ao mesmo tempo, contos curtos virão vem a calhar entre uma leitura e outra.
Beijo!
Aline,
Estou num misto de "quero ler os outros" com "não quero ler tudo de uma vez"... rs. Mas é inegável que lerei os outros. São bons demais para serem ignorados, né?
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