quarta-feira, 23 de abril de 2014

Resenha: A Caixa-Preta


Alex e Ilana foram casados por nove anos e, após um divórcio conturbado, passam sete anos sem se falar. Agora, diante da expulsão escolar de Boaz, o filho adolescente do casal que já vinha apresentando problemas comportamentais havia algum tempo, Ilana decide finalmente escrever para o ex-marido em busca de ajuda. No entanto, o que era para ser apenas um pedido de comprometimento paterno se transforma em uma torrente de acusações e sentimentos dúbios represados por tempo demais.

O livro todo consiste em trocas de cartas e telegramas, não apenas entre Alex e Ilana, mas também com o atual marido de Ilana, o advogado de Alex, a irmã de Ilana e o próprio Boaz. Embora o foco principal esteja em Alex e Ilana, que repassam seu relacionamento falido e o que levou à separação, os outros personagens também são importantes, pois apresentam outros aspectos do comportamento da dupla de protagonistas e levantam questões pertinentes para a trama.

Logo na primeira carta de Ilana para Alex, ficamos sabendo que o casamento terminou porque ela foi acusada de adultério. Não sabemos se a traição realmente ocorreu ou não, mas já conhecemos o resultado de tal acusação: Boaz despreza a mãe. Isso explica, em parte, a rebeldia do garoto, que decide se afastar de todos os adultos (pais, padrasto, tios) para estabelecer uma comunidade que rejeita todas as regras impostas pela sociedade. Incompreendido, ele é taxado de louco e imaturo, mas, no desenrolar da história, vemos que é o personagem mais responsável, determinado, correto e emocionalmente estável de todos.

De Alex sabemos pouco: só que é um professor universitário e escritor mundialmente famoso. No início ele dá respostas curtas, prefere se comunicar com a ex-esposa e com o atual marido dela por meio de seu fiel advogado e amigo. Depois, começa a tentar uma aproximação com o filho, decide usar o pouco tempo que lhe resta para corrigir erros do passado, desce de seu pedestal e assume sua pequenez diante do universo.

Michel, o marido de Ilana, parece ser uma pessoa completamente oposta a Alex: um cara simples, que aceitou Ilana e seu filho de braços abertos, um esposo dedicado que ajuda nas tarefas domésticas, que aprecia os bons momentos ao lado da amada. Extremamente religioso, ele cita trechos da Torá a todo momento, está envolvido na luta pela Palestina ativamente por meio de uma fundação. Entretanto, ao longo de suas cartas presenciamos sua transformação diante do dinheiro.

O que torna esse livro brilhante é a construção dos personagens, tão reais e cheios de virtudes e defeitos. Embora seja possível ter um personagem preferido, não dá para não se identificar com todos eles em pelo menos algum momento. Não tem como não se entristecer com a insatisfação de Ilana (apesar de ela ser bem cruel às vezes), não admirar a boa vontade de Michel com o enteado (embora ele teime em "converter" a todos, sempre), não torcer pela realização dos sonhos de Boaz (mesmo que, no início, pareça que ele está apenas a fim de causar tumulto), não se compadecer de Alex (ainda que em certa altura da história ele mostre seu lado doentio).

Assim como o leitor, Amós Oz se divide entre todos os personagens, colocando um pouco de sua voz em cada um deles. Além disso, “Caixa-preta” se destaca por ser uma história sobre amores desfeitos, sobre planos não concretizados, sobre relacionamentos conjugais e entre pais e filhos, sobre amizade, sobre discussões religiosas e o panorama político e social de Israel. Resumindo: qualquer que seja a perspectiva de leitura, há sempre algo interessante a se tirar do livro.

“Esta narrativa confunde toda a sua estratégia? Sinto muito. Você perdeu um ponto. Como foi que você me disse uma vez? Quando a batalha está no auge não há mais sentido nas regras iniciais. Em todo caso, o inimigo não conhece as regras e não age de acordo com elas.”

Intenso, triste, divertido, reflexivo. Simplesmente maravilhoso!

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