segunda-feira, 28 de abril de 2014

Resenha: Mrs. Dalloway


Clarissa Dalloway é uma mulher de meia-idade, casada com um importante deputado conservador e mãe de uma adolescente. A trama se desenrola ao longo de um dia, durante o qual Mrs. Dalloway se empenha em organizar uma festa enquanto relembra acontecimentos. Coincidentemente, alguns amigos do passado batem à sua porta e deixam a metódica Clarissa totalmente perdida em seus sentimentos.

A maior parte da ação da história acontece na mente dos personagens. Enquanto Clarissa caminha pelas ruas de Londres para comprar flores, por exemplo, ela observa tudo ao seu redor (o sol, as pessoas, os cães, o trânsito, o perfume da primavera no ar) e, ao mesmo tempo, recorda algumas situações de sua juventude, conjectura sobre como seria sua vida se tivesse feito outras escolhas, pensa nos amores adolescentes que viveu. Logo fica claro que ela é uma mulher prática, que optou por um casamento que lhe proporcionasse uma boa vida, que privilegia a racionalidade em detrimento das emoções. Como o próprio título indica, ao aceitar esse casamento Clarissa abriu mão não apenas de sonhos, mas de sua identidade também. Deixa de ser 'Clarissa' para ser 'Mrs. Dalloway'; deixa de fazer as coisas para si e passa a fazer o que for preciso para agradar aos outros.

Um desses amores evocados por Clarissa é Peter, preterido por ela e por seu pai em favor de Richard, o Mr. Dalloway, em virtude de sua condição financeira e social. Considerando Clarissa uma pessoa fria e puritana, Peter, depois de rejeitado, partiu para a Índia, onde se casou, e agora chega à casa dos Dalloway sem ser convidado, despertando na anfitriã sentimentos conflitantes.

Outro interesse romântico de Clarissa que também aparece na festa e a deixa ainda mais confusa é Sally, a completa antítese da protagonista. Sally teve um papel importante na vida da jovem Clarissa, pois foi uma das poucas pessoas pobres com quem ela conviveu, mostrou a ela que era possível aproveitar a vida mesmo sem dinheiro; foi uma garota bonita e admirada, que chocava os outros com seu comportamento livre e espontâneo, com sua falta de pudor. Clarissa e Sally partilharam leituras e um amor puro e juvenil na adolescência.

Uma característica muito peculiar do livro é a forma livre de apresentação dos pensamentos dos personagens. Além dos três que citei acima, outras figuras entram e saem de cena sem aviso prévio e sem marcação que distinga suas falas e suas ideias. Por exemplo, durante o passeio de Clarissa no início da história, ela vê um casal sentado num banco da praça. A conversa desse casal, os anseios e as aflições da esposa e a imaginação do marido são inseridos no texto, em meio à narração da caminhada da protagonista, que depois reassume o papel principal. Mais adiante, o casal aparece novamente e seus dramas são mais detalhados. Essa mistura de vozes é constante no livro todo.

É interessante notar que a morte (ou sua ideação) está presente em vários momentos da história, seja nos pensamentos e ações de Septimus (o homem sentado no banco da praça com a esposa), seja nas lembranças de Clarissa sobre a irmã (o que fez com que ela deixasse de crer em Deus). A autora usa com maestria uma trama simples e aparentemente banal para criticar a alta sociedade londrina, as falsas aparências, a guerra e suas marcas indeléveis, e, como se isso não fosse o bastante, ainda joga homossexualismo e feminismo na mistura. Uma ousadia para poucos.

Destaco o mapa da zona central de Londres, incluído nas primeiras páginas dessa edição de bolso da Saraiva, como um ponto positivo. Dá para imaginar mais vividamente e acompanhar o passeio de Clarissa pela cidade. Como ponto negativo, menciono a inexistência de capítulos. Detesto não ter uma marcação bem definida de pausa na leitura. Tudo bem que faz parte da intenção de fluxo contínuo do pensamento, mas não me agrada nem um pouco.

"Sentia-se muito jovem; e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma navalha através de tudo; e ao mesmo tempo ficava de fora, olhando. Tinha a perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse."

Um clássico que merece essa classificação. Recomendo.


Este post faz parte do Desafio Literário Skoob 2014 - Mês de Abril: Livros Escritos Por Mulheres. Para ver a lista de obras selecionadas e outros posts do DLSkoob2014, clique AQUI. 

4 comentários:

Jeniffer Geraldine disse...

Sem dúvidas, parece ser um livro interessante. Tenho muita vontade de ler. Algumas pessoas acham a obra um pouco complexa por conta de, como você mesma disse, "parte da ação da história acontece na mente dos personagens", mas da forma como colocou na resenha não parece ser tão complexo assim. Me deu mais coragem para encarar a leitura. rs
Muito bom!
Beijos! :)

Anônimo disse...

Li Mrs. Dalloway em meados de fevereiro, considerando o desafio do mês, que eram os clássicos. Minha primeira leitura do livro e a sensação que ficou é que talvez eu não consiga considerar qualquer outro da autora melhor. Apesar da angústia característica que fica nessa narrativa do tipo fluxo de consciência, há uma pessoalidade - e uma compreensão - que quase acalma.

Quanto à morte, para Virginia, o que se materializa anos depois, é ela o próprio aconchego.

Ótima resenha Michelle.

Lígia disse...

A Virginia Woolf era dessas autoras que eu tinha medo de ler, porque romance psicológico nem sempre me cai bem, mas li Mrs. Dalloway faz um tempo e a leitura me agradou bastante, tanto que me deu vontade de ler outros da autora. :)

Maria Faria disse...

Está na minha lista para ler e venho adiando por medo de não gostar, sua resenha ficou completa e me fez sentir mais vontade de ler.