quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Resenha: Assim na terra como embaixo da terra


Numa colônia penal prestes a ser desativada, presos aguardam a chegada daquele que cuida da papelada para autorizar a transferência dos homens. Mas antes mesmo de seu encerramento oficial, o lugar já tinha sido esquecido e abandonado havia tempos. Do lado de dentro daqueles muros de 6 metros de altura encimados por cerca eletrificada havia um mundo à parte, com regras rígidas criadas e aplicadas conforme o humor do oficial responsável, Melquíades, que gostava de se gabar do fato de nunca um detento ter conseguido escapar dali.

O cenário em que se desenrola a trama é de pura desolação: prédios velhos e mal conservados, terreno árido e pedregoso, comida improvisada, telefone cortado, serviço postal que não passa há meses. Como se as condições ali já não fossem ruim o bastante, o comportamento agressivo e sádico do agente superior acrescenta tintas de terror à história quando ele decide se divertir em noites de lua cheia caçando os internos. Para o horror ficar completo, a colônia foi construída no terreno de uma antiga fazenda de escravos. Pois é. Camadas e mais camadas de puro sofrimento formam aquele lugar.

Apesar de curto, é um livro intenso e pesado. Suas poucas páginas bastam para nos mostrar como é o cotidiano tenso na colônia, revelar um pouco do passado dos presos (em especial de Bronco Gil, arqui-inimigo de Melquíades), evidenciar o processo de desumanização daquelas pessoas, que não estão ali para pagar por seus crimes (isso elas já fizeram), mas porque é mais cômodo fingir que elas não existem, deixar que sumam da face da Terra aos poucos, se desintegrem dia após dia, para que ninguém tenha lidar com elas quando forem postas em liberdade.

Como em outros livros da autora, neste também homens brutos e sem esperança dão o tom à narrativa. São personagens que não têm sonhos ou aspirações porque vivem num mundo cruel, no qual sua sobrevivência depende de estarem alertas 100% do tempo, calculando seus movimentos e medindo suas palavras com o objetivo de chegarem vivos ao fim de mais um dia.

Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, o livro nos faz refletir sobre o sistema carcerário e sua ligação com o passado escravocrata, sobre justiça e punição e sobre o que diferencia homens de animais. Mais uma excelente leitura. Ana Paula Maia me prendeu e incomodou mais uma vez.

"Os homens que ainda restam na Colônia dividem-se no trabalho do roçado e da cozinha desde muito cedo. O galinheiro e a pocilga já foram devidamente cuidados. Pablo puxa uma carroça cheia de sacos de lixo. Sente-se um jumento, uma besta de carga. Desde que os cavalos foram mortos, são eles que puxam as carroças. Atravessa uma parte da fazenda cujo solo é mais arenoso, provocando, assim, o afundamento das rodas. Isso dificulta seu labor de besta e, vez ou outra, precisa parar para se recompor. O lixão atrai abutres para o local, e o fato de incinerarem a imúndicie não os espanta. Pelo contrário, como um sinaleiro, a fumaça parece atraí-los ainda de mais longe. Observa o voejar das aves negras, cortando o céu com suas asas arqueadas, grasnando uma para a outra, numa comunicação que ecoa a quilômetros de distância."

Nota: 5/5


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