segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Resenha: Quarto de Despejo


Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais e migrou para São Paulo após a morte da mãe, na década de 40. Como muitos outros migrantes que desembarcavam por aqui, foi morar na favela – especificamente na antiga Favela do Canindé, uma das primeiras e maiores da cidade, que foi eliminada anos mais tarde para a construção de trecho da Marginal Tietê. Em ‘Quarto de Despejo’, Carolina conta, na forma de diário, um pouco de sua rotina e de todos os seus esforços para sair da favela.

Com senso crítico apurado, Carolina narra o que acontece em seu dia a dia e acaba com a romantização da favela, frequentemente mostrada como um lugar boêmio por sambistas e como uma comunidade unida, na qual os moradores lutam sempre juntos para superar as dificuldades. Carolina escancara a realidade: brigas constantes, muitas delas devido ao álcool, mulheres encrenqueiras, homens sustentados pelas esposas, idosos que trabalham duro e jovens que preferem viver de auxílio do governo e da caridade de estranhos.

Indo na contramão dos vizinhos, Carolina, que cria sozinha (e com orgulho) três filhos, não quer viver de esmola nem de assistencialismo, e encara o trabalho pesadíssimo de catadora de papelão para botar comida na mesa. Na verdade, sair para trabalhar é um dilema: ela vive constantemente preocupada com os meninos, que ficam sozinhos em casa, saem para a rua, se metem em confusão e são agredidos por outros moradores, mas, por outro lado, ela não tem escolha.

E sua rotina dura cobra um preço altíssimo. O texto, bem repetitivo, exemplifica perfeitamente a rotina exaustiva. Em vários momentos, Carolina diz que se sente indisposta, que queria apenas continuar deitada, mas a fome não dá trégua. A Amarela, como é chamada aquela que faz as barrigas roncarem, é um personagem fundamental da história e, no fundo, a única característica comum a todos os moradores da favela. A fome, o cansaço e a desesperança às vezes fazem a autora pensar em desistir de viver, mas, de alguma forma, esses pensamentos sombrios são dissipados pelo sonho de, um dia, ser uma escritora reconhecida e poder morar em um lugar melhor.

Com apenas o segundo ano do ensino fundamental concluído, Carolina tem oito livros publicados, entre publicações em vida e póstumas. ‘Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada’ foi sua primeira obra, lançada em 1960, com intermediação do jornalista Audálio Dantas, que conhecera a autora dois anos antes enquanto entrevistava moradores da favela para uma reportagem. Ele encontrou e editou 20 cadernos de Carolina em trechos publicados em uma matéria na Folha da Noite, em 1958, e posteriormente na revista O Cruzeiro, em 1959. No livro, a grafia original foi mantida, e foram feitas apenas pequenas correções de pontuação e ortografia de algumas palavras para facilitar a compreensão.

‘Quarto de Despejo’ quebrou barreiras. Após seu lançamento, o livro atingiu a marca de 100.000 exemplares vendidos (até 1993, ano da edição que eu li), contra a tiragem usual de 2-3 mil exemplares. A história ganhou o mundo e foi traduzida para 13 idiomas. Com tanto sucesso, ainda mais para uma autora pobre e iletrada, surgiram dúvidas sobre a autenticidade do texto, questionando a autoria da obra. Mas vários escritores brasileiros, como Rachel de Queiroz, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira, saíram em defesa da autora. O livro fez tanto sucesso que a discussão ultrapassou o âmbito da literatura, e o problema das favelas virou assunto de debate entre técnicos, políticos e no meio acadêmico.

A Favela do Canindé já não existe mais; no entanto, o problema está longe de ser solucionado. Mais de 50 anos depois de Carolina Maria de Jesus escancarar as dificuldades daqueles que vivem em quartos de despejo, os barracos continuam se espalhando pelas cidades, e as situações apontadas por ela em seus diários mudaram muito pouco também. 

“... Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.”

Nota: 4/5

2 comentários:

Jeniffer Geraldine disse...

Sou louca para ler esse livro. Deveria ter lido pro Leia Mulheres de Salvador mas não me organizei.
Leitura necessária. E adorei o texto.
Bjs
www.jeniffergeraldine.com

Michelle disse...

Jeniffer,
Tks! Quando tiver oportunidade, leia. Necessário mesmo.