sexta-feira, 13 de março de 2015

Resenha: Um Teto Todo Seu


Em 1928, Virginia Woolf foi convidada a dar uma palestra em uma universidade da Inglaterra sobre as mulheres e a ficção. Então começou a se perguntar por que as mulheres escreviam muito menos que os homens. Percorreu um árduo e sinuoso caminho em sua pesquisa e, resumidamente, a conclusão a que chegou foi que as mulheres produziriam muito mais se tivessem uma renda que permitisse seu sustento e um cômodo em que pudessem se trancar por algum tempo e escrever, sem interrupções. 

Virginia começa o livro de um jeito aparentemente inocente e despretensioso, falando-nos de sua caminhada pelo campus enquanto tentava decidir por onde começar, mas é interrompida pelo bedel porque estava saindo da trilha. Define, então, que deveria iniciar sua pesquisa na biblioteca da universidade, mas, ao adentrar o recinto, um cavalheiro surge e impede sua entrada, pois as damas só eram aceitas se acompanhadas por um membro masculino ou se portassem uma carta de apresentação.

Recolhendo-se ao seu aposento, percebe que alguns dos motivos que explicam a insignificante produção literária feminina haviam sido esfregados em sua cara naquele dia: às mulheres sempre foi negado o direito à liberdade de seguir seu próprio caminho (pelos afazeres domésticos, pelas obrigações com os filhos, pelo comportamento submisso – primeiro ao pai e depois ao marido), assim como sempre lhes foi negado o acesso à educação (o ensino formal não tinha serventia em casa, uma carreira não era desejável).

Assim, a falta de liberdade e de instrução acaba por aprisionar as mulheres, a limitar drasticamente suas escolhas e, consequentemente, inviabiliza sua independência financeira. Sem dinheiro para bancar sua própria vida, ela segue o caminho traçado por outrem, resignando-se. Entretanto, as mais talentosas ou rebeldes entre aquelas poucas privilegiadas que aprenderam a ler e a escrever e que têm um quarto todo seu, sentem arder dentro de si as inquietações e desejam se expressar, colocando no papel suas angústias. Mesmo para tais felizardas, a tarefa não é fácil, pois seu trabalho é sempre visto como inferior, simplesmente porque foi feito por alguém do sexo ‘errado’. Não à toa, grandes autoras tiveram que apelar para pseudônimos masculinos para que tivessem suas obras aceitas.

Uma coisa interessante que Virginia descobriu quando finalmente pôde entrar na biblioteca foi que, embora o número de livros escritos por autoras fosse muito pequeno, o volume de obras que falavam das mulheres era imenso, ou seja, a mulher não pode falar por si mesma, mas é objeto constante de análise pelo sexo masculino. A percepção pelo sexo oposto varia drasticamente: ou se considera que o sexo feminino é secundário ou se eleva as mulheres ao patamar de ser inatingível e, portanto, irreal. Além disso, as mulheres são quase sempre retratadas como incapazes de manter uma relação de amizade sincera com uma pessoa do mesmo sexo. Interessante. 

As reflexões de Virginia Woolf me fizeram pensar em algo que me sempre me incomodou, mas eu não sabia bem por quê: as personagens dos romances femininos do século XVIII e XIX (como aquelas criadas por Jane Austen e pelas irmãs Brontë) e sua incrível falta de assunto. Nesses livros, a história sempre gira em torno de um casamento ou uma paixão, enfim, um interesse romântico. OK, um casamento era tudo o que uma mulher podia esperar naquele tempo, mas será que não dava para falar de outra coisa?

A resposta é: não dava. O mundo das mulheres por muito tempo se limitou às quatro paredes de sua casa; no máximo, um passeio à cidade ou ao campo. As mais ricas iam atrás de roupas e sapatos (o que mais elas poderiam querer?); as mais pobres lidavam com os afazeres domésticos. Ao contrário dos autores, que sempre tiveram a opção de cair no mundo, ainda que nem sempre levassem uma vida fácil, as escritoras jamais puderam viajar sozinhas, conhecer outras realidades, realizar outros trabalhos; elas nunca tiveram chance de sonhar com aventuras, expedições, experiências, planetas distantes, universos inventados. Por isso as histórias são tão parecidas, repetitivas e, em certo sentido, sem graça.

O mais assustador de tudo é que essa diferença abissal entre as possibilidades oferecidas às meninas e aos meninos ainda persiste: é só observar o tipo de brinquedos dos garotos (eles podem empunhar espadas e pistolas, usar equipamentos de bombeiro/polícia, montar e desmontar coisas como um habilidoso mecânico, fazer experimentos com laboratórios de química/eletrônica, podem se imaginar no passado, vivendo em cavernas e perseguindo dinossauros, podem desbravar os mares como piratas, podem encarnar espiões; mas também podem ser transportados para o futuro, cruzando o espaço em naves espaciais, pilotando jatos velozes, lutando com robôs) e aqueles reservados às garotas (todo tipo de produtos para o lar: ferro de passar, conjunto de panelas, batedeiras, fogões, vassouras; bonecas lindas, louras, peitudas e absurdamente magras que são misses, atléticas ou princesas; quinquilharias infinitas que focam apenas na vaidade: acessórios de cabelos, bijuterias, maquiagem). Mas e aí? Quer dizer que as opções das garotas se limitam aos afazeres domésticos e à busca de um visual irretocável? Elas não podem sonhar com nada que não faça parte da realidade próxima?

Bem, acabei desviando um pouco do assunto, mas não de todo. A forma como a mulher é representada nos livros reflete o mundo real e, ao mesmo tempo, faz com que o padrão continue sendo reproduzido. Sem dúvida, conseguimos alguns avanços em relação às personagens de Jane Austen e companhia, mas ainda falta muito para nos colocar em pé de igualdade com os homens na ficção e no mundo real. E acho que, se o livro me fez pensar nisso tudo, cumpriu muito bem o seu papel.

"As obras-primas não são frutos isolados e solitários; são o resultado de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a experiência da massa está por trás da voz isolada”.


Um mergulho fascinante na história da humanidade e no papel da mulher ao longo dos séculos e como isso se reflete na ficção produzida pelo sexo feminino. Recomendo!


Este livro foi lido para a discussão de fevereiro do projeto Bastardas. Em março leremos "As Meninas", da Lygia Fagundes Telles.

4 comentários:

Lua Limaverde disse...

Eu queria muito ter lido este pro fórum das Bastardas, mas não deu pra encarar duas Woolf no mesmo mês, rs. E agora As Meninas já foi lido no Fórum e não curti muito, vou ficar esperando o momento pra participar.
Assim que eu conseguir ler vou ver a discussão por lá, que deve ter sido ótima. =)
Beijinhos, Mi!

Anônimo disse...

Oi, Mi! Apesar de não me incomodar, para mim também me parecia reduzidas as preocupações das moçoilas de outra época... E justamente, como a Virgina Wolf, bem colocou, porque o universo delas era limitado.
Os brinquedos das crianças ainda é bem segmentado por sexo, mas tem o outro lado: uma amiga queria comprar panelinhas pro filho brincar com ela de cozinhar e só tinha itens rosas. Menino tb pode brincar de cozinhar, não?

Anônimo disse...

Oi, Mi! Apesar de não me incomodar, para mim também me parecia reduzidas as preocupações das moçoilas de outra época... E justamente, como a Virgina Wolf, bem colocou, porque o universo delas era limitado.
Os brinquedos das crianças ainda é bem segmentado por sexo, mas tem o outro lado: uma amiga queria comprar panelinhas pro filho brincar com ela de cozinhar e só tinha itens rosas. Menino tb pode brincar de cozinhar, não?

Anônimo disse...

Ainda estou lendo este livro, mas acredito que é um ótimo livro, mesmo.
Adorei sua resenha! Você fez realmente comentários necessários pensando a realidade das mulheres na época.
Um beijo!