sábado, 16 de setembro de 2017

Resenha: Vulgo, Grace


Em 1843, no Canadá, Grace Marks foi presa aos dezesseis anos, acusada de ter assassinado seu patrão e a governanta com a ajuda de James McDermott, outro empregado da casa. Em um julgamento apressado e embasado em provas circunstanciais e testemunhos nem sempre confiáveis, McDermott foi condenado à morte na forca e assim executado; Grace, devido à pouca idade e à influência de algumas pessoas que acreditavam em sua inocência, teve sua pena comutada em prisão perpétua. Em seu depoimento, ela alegou não se lembrar do que havia acontecido em algumas ocasiões em que desmaiou e ficou desacordada durante horas. Teria ela mentido descaradamente para se proteger ou será que havia mesmo esquecido alguns eventos? Será que não havia participado do crime, que teria sido forçada por McDermott a matar ou que assassinara os dois por livre e espontânea vontade? Seria Grace louca ou uma criminosa fria e cruel?

Margaret Atwood usou como base notícias e documentos de um caso real ocorrido no Canadá no Século 19 para preencher certas lacunas da história e criar personagens interessantes e cheios de camadas, tão ou mais críveis do que aqueles de carne e osso que serviram de inspiração. Assim como o caso real, o livro também não tem um desfecho: as perguntas do parágrafo acima permanecem sem resposta. Longe de tratar a história como um romance policial no qual se quer descobrir quem é o assassino e quais suas motivações, a autora usa seu afiado senso crítico e seu olhar perspicaz para abordar temas que lhe são caros: o papel da mulher na sociedade, as diferenças de classes sociais, dicotomias entre discurso e ação, e, com maior destaque neste trabalho, os mistérios da mente.

A narrativa não é linear e, ao fio condutor formado pelas conversas de Grace com o Dr. Simon Jordan, jovem médico que estuda doenças mentais, principalmente a amnésia, e que vê na protagonista uma ótima oportunidade de aprofundar sua pesquisa, ganhar a confiança e o respeito entre seus pares para fazer nome, são acrescentados recortes de jornal da época do crime, excertos de livros e poemas. Grace, na ocasião de suas sessões com o Dr. Jordan, não é mais menina, pois pouco mais de quinze anos se passaram desde sua condenação, e agora sua vivência atrás das grades (tanto no manicômio quanto na prisão) já é grande o bastante para que ela saiba que não deve confiar em ninguém e que a esperança, embora ainda exista, é uma luzinha fraca brilhando no fundo de sua mente.

A maior parte do livro é dedicada à interação entre Grace e o Dr. Jordan, e é por meio dessas conversas que ficamos sabendo da infância miserável e triste da protagonista e de seus irmãos, de sua primeira colocação numa casa para trabalhar como serviçal, de sua ida para a residência de Thomas Kinnear (onde o crime aconteceu), de sua amizade com a esperta Mary Whitney e com o mascate Jeremiah. Embora nos primeiros encontros Grace tivesse medo (com razão) do médico, aos poucos ela vai relaxando e ansiando por aquelas sessões, a única ocasião em que podia conversar de verdade com alguém. É claro que ele tinha seus interesses (e ela jamais esqueceu disso), mas para o Dr. Jordan ela podia contar qualquer coisa (verdadeira ou não), ser quem quisesse. E com a astúcia de quem já passou por muitas dificuldades na vida e aprendeu quando falar e quando se calar, ela vai jogando para ele pequenas migalhas de informação, enredando o ingênuo médico em sua teia de lembranças e prolongando aqueles dias agradáveis como pode, como uma espécie de Sherazade.

O Dr. Jordan, por sua vez, fica fascinado com aquela paciente, alterna sentimentos de raiva e pena por ela (às vezes ele acha que ela finge; às vezes se comove com suas desgraças), de ansiedade e decepção (ele precisa fazer avanços em sua pesquisa e ter algo de sólido para mostrar ao mundo e ter sua capacidade de médico reconhecida, mas em várias ocasiões duvida de sua prática, de seus métodos e de seu talento). Ao contrário de Grace, que tem vivência, apanhou da vida desde pequena e teve que aprender a se virar sozinha, o médico, embora tenha a mesma idade de sua paciente, é o típico ‘filhinho da mamãe’, sempre foi mimado e protegido, vive até hoje à custa da pensão da genitora, pode se dar ao luxo de viajar e experimentar e buscar uma carreira sem ter que se preocupar com dinheiro e responsabilidades. É sua mãe idosa e doente, aliás, quem se encarrega de consertar as besteiras que ele faz. Não é de se admirar, portanto, que Grace perceba o quanto ele é influenciável e use isso a seu favor.

Uma coisa que chamou minha atenção quando fui reler os trechos do livro sinalizados com post-its foi a referência constante às mulheres loucas (mais especificamente, aquelas assim tachadas): as personagens de livros escritos pelo Sr. Walter Scott (que também podiam ou não ser suicidas), aquelas usadas pelo Dr. Jordan para expor seu ponto de vista com relação à prostituição (“Se as mulheres são seduzidas e abandonadas supõe-se que enlouqueçam, mas se sobrevivem, e seduzem por sua vez, então são consideradas loucas desde o começo”), a própria Grace (“Então me lembrei de Mary Whitney lendo aquele poema (...) eu me lembrava melhor era o da pobre mulher que tinha sido raptada da igreja no dia do seu casamento, raptada para o prazer de um nobre, e que tinha enlouquecido com isso, e vagava colhendo flores silvestres e cantando para si mesma. Considerei que eu também estava sendo raptada de certa maneira, apesar de não ser no dia do meu casamento; e pensei que poderia acabar com o mesmo destino”). Uma crítica da autora a essa categorização feminina tão comum ainda nos dias de hoje, não é mesmo?

Meu veredicto final é: ‘Vulgo, Grace’ é um livro incrível, com personagens muito bem construídos e uma trama instigante que coloca o leitor ora no tribunal, assistindo ao julgamento e ouvindo os testemunhos, mas sem saber ao certo o que aconteceu, sem ter acesso às provas, ora no sofá ao lado do médico, escutando Grace contar sua história, sofrendo com ela, torcendo por ela, mas ainda assim duvidando das palavras dela. Sai a investigação criminal e a resolução do mistério, entra a observação da natureza humana. Para mim, pelo menos, isso vale muito, tem forte apelo.

“Posso me lembrar do que disse quando fui presa, e o que o Sr. MacKenzie, o advogado, disse que eu deveria dizer, e o que eu não disse nem a ele; e o que eu disse no julgamento, e o que eu disse depois, que também foi diferente. E o que McDermott disse que eu disse, e o que os outros dizem que eu deveria ter dito, pois sempre há quem lhe forneça seus próprios discursos, e os coloque em sua boca por você também; e esse tipo é como os mágicos que podem projetar sua voz, nas feiras e espetáculos, e você é só o boneco de madeira deles. E foi assim no julgamento, quando eu estava na cadeira dos réus, mas bem poderia ser feita de pano, recheada, com a cabeça de louça; e eu estava trancada dentro daquela boneca que era eu mesma, e minha verdadeira voz não podia sair.”

Nota: 5/5

P.S.: Só para lembrar, ‘Vulgo, Grace’ será lançada pela Netflix como uma série em seis episódios e deve estrear no Canadá agora em setembro, e no resto mundo em data posterior (ainda não divulgada). Veja o trailer teaser AQUI.

Mais uma leitura incrível que fiz com a Lulu (obrigada, sempre!) para o nosso projeto 'Lendo Margaret Atwood'. Confiram aqui a resenha dela de 'Vulgo, Grace', e vejam abaixo outras informações sobre o projeto ;)

Esta resenha faz parte do Projeto Lendo Margaret Atwood. Veja AQUI a lista de títulos com os links para minhas resenhas já publicadas. Para ver as resenhas que a Lulu preparou especialmente para o projeto, clique AQUI.




Este post faz parte do Desafio Volta ao Mundo em 80 Livros[Canadá]Para ver a apresentação do projeto e a lista de títulos/resenhas, clique AQUI ou no banner na coluna à direita. 

4 comentários:

Unknown disse...

Parece um livro bem interessante. Já vou colocar na lista.
Ando bem curiosa pra ler algo da autora.

Beijos!
Carissa

Anônimo disse...

Ótima resenha, Mi! (^_^) A forma como Margaret Atwood tece a narrativa é tão instigante e difícil de largar, que sua comparação feita com a personagem Sherazade, de Mil e Uma Noites, ficou bem curiosa. É bem isso.
Quando a referência constante às mulheres loucas, boa observação. Acredito também que Atwood quis mostrar nessa categorização feminina como o sistema injusto leva as mulheres para tal lamentável estado, pois um paço em falso, seja o mais bobo, pode acabar com a integridade dela.
Agradeço novamente pela companhia nessa leitura e das conversas (^_^).
Ansiosa para o próximo livro (*-*).
Beijão!

Michelle disse...

Carissa,
Esse é mais um dos que recomendo sem pestanejar :)

Lulu,
Atwood é viciante, né?
Eu que agradeço! Vamos preparar a próxima dose...hehe
Bjo

Unknown disse...

ficou perfeita a resenha