domingo, 28 de outubro de 2018

Resenha: O Ano do Dilúvio



O Dilúvio Seco foi uma epidemia que dizimou quase toda a população humana da Terra. Aos poucos sobreviventes, que vagam por um ambiente hostil infestado de animais geneticamente modificados e ferozes, resta ter coragem e uma boa dose de sorte. As duas protagonistas desta história, Toby e Ren, não foram infectadas por obra do acaso e, em seus respectivos isolamentos, enquanto pensam no que farão em seguida para continuar existindo, relembram suas histórias de vida. Correndo paralelamente à trama de "Oryx e Crake", este segundo volume da trilogia MaddAddam mostra os mesmos eventos do primeiro livro, mas da perspectiva de pessoas que viviam fora dos Complexos.

Toby é uma mulher de meia-idade que teve uma vida terrível (com direito a família destruída pelas corporações) e que sobreviveu de subempregos por um bom tempo, num deles sendo abusada sexualmente pelo chefe, um brutamontes temido em seu território. Um dia, Toby consegue escapar das garras do abusador graças a uma confusão armada pelos Jardineiros de Deus, um dos vários grupos religiosos da região decadente da cidade. Embora ela não tenha a mesma fé que eles, Toby é grata pela ajuda e fica morando no Edencliff, o terraço onde os jardineiros cultivavam sua horta. Em troca, ela dá aula de botânica às crianças e cuida do preparo de loções e poções. Sobrevive ao dilúvio porque na ocasião trabalhava em um Spa, no topo de um edifício.

Ren, por sua vez, é uma jovem que cresceu em Edencliff. Desde pequena, aprendeu a trabalhar em conjunto e a pensar levando em conta o bem-estar coletivo. Mas o que ela sempre quis, como todas as crianças do bando, era desfrutar das quinquilharias e novidades tecnológicas que os jovens que viviam nas ruas decadentes nos arredores do terraço possuíam. Acostumada a ser invisível, a viver de coisas de segunda mão ou recicladas, tudo que ela almejava era ter sua própria individualidade. Um dia, ela conhece a jovem Amanda, que era bem familiarizada com a realidade das ruas, mas que aceitar ir morar com Ren no QG dos jardineiros. Amanda é mais uma que não tem a mesma crença que eles, mas aceita as regras (ou pelo menos a maioria delas) em troca de um local seguro para morar e de comida. É a amizade com Amanda que faz com que Ren vá trabalhar na boate Scales, e é por estar trancada numa sala de quarentena enquanto aguardava os resultados de exames que Ren sobrevive ao dilúvio.

Como sempre acontece quando leio algo da Atwood, demorei um tempo até entrar na história. Além de ser dividida entre a narrativa de Ren e a de Toby, a trama ainda segue o Ano 25 (quando o dilúvio ocorreu) e os eventos imediatamente posteriores e há também uns discursos do Adão Um aos jardineiros.

Nos dias santos, são mencionadas pessoas de diversas áreas de atuação, tais como São Stephen King (referência na literatura de terror), Santa Dian Fossey (zoóloga americana que dedicou sua vida ao trabalho científico e preservação dos gorilas nas montanhas de Ruanda e do Congo; acabou assassinada por caçadores ilegais), São Mahatma Gandhi (fundador do moderno estado indiano e líder que pregava a não-violência como revolução) e São Chico Mendes – Mártir (ativista e ambientalista brasileiro que agia contra os interesses de fazendeiros locais e, por isso, foi assassinado). Por meio da beatificação ficcional de pessoas reais, Atwood enfatiza ainda mais sua veia ambientalista e/ou homenageia as pessoas que admira e que certamente seriam celebradas pelos Jardineiros de Deus – ou por qualquer um que preze valores humanitários.

Continuando na pegada de crítica social e mostrando as consequências desastrosas da combinação capitalismo + ciência, neste segundo volume da série vemos em detalhes a vida das “pessoas da ralé”, toda a degradação a que estavam sujeitas, a violência, a fome. Temos a grife que vende peças feitas de couro/pelo de animais em extinção, a carne de animais exóticos sendo degustada em salas de acesso exclusivo aos sócios endinheirados, as carcaças sendo vendidas para uma rede de lanchonetes que usa até carne humana em suas refeições – tudo com a aprovação das grandes corporações que lucram imensamente em manter as coisas assim.

Outro viés sempre presente nas obras da autora, a exploração da mulher, também dá as caras aqui e, a certa altura, vem combinado com a já esperada crítica às instituições religiosas – no caso, os Jardineiros de Deus. Apesar de pregarem o amor e o respeito por todos os seres vivos, eles parecem não ver problemas em considerar as mulheres como exceção, já que em alguns momentos há relatos de um membro do grupo que pulava em cima de integrantes femininos em busca de sexo, mas tal comportamento era visto como inofensivo, apenas um instinto primitivo, bem como um outro participante que sentia atração pelas axilas das garotas adolescentes, mas todos consideram tal atitude apenas como uma brincadeira inocente, uma preferência.

Uma surpresa que tive foi reencontrar personagens de “Oryx e Crake”. Eu sabia que a história se passava no mesmo universo, mas não imaginei que fosse rever os antigos protagonistas nesse segundo volume. E foi realmente inesperado, porque eles aparecem lá pela metade do livro, sem identificação imediata, no meio do que parece ser apenas o desenrolar de uma cena qualquer. Mas é desse jeito que a autora vai montando o quebra-cabeça, soltando informações importantes de modo casual. É assim que ela revela um pouco mais sobre o projeto de uma nova espécie humana, sobre o jogo online MaddAddão, sobre como teve início a epidemia que levou ao fim da civilização. E também sobre a cena final do primeiro livro!

Apesar de ser uma leitura que demorei para "abraçar", que me deixou exausta mentalmente, que nem é uma das minhas preferidas da autora, não tenho como negar que gostei muito. E que estou muito ansiosa para saber como essa trama rocambolesca vai terminar. Aliás, parece que finalmente a Rocco vai lançar no Brasil o volume final da trilogia (ou pelo menos era esse o plano quando eles deram a notícia lááááá em fevereiro). E supostamente agora sai a adaptação da história para uma série de TV (desde 2014 que falam nisso, mas vamos botar fé que desta vez vai).

“Cuidado com as palavras. Cuidado com o que você escreve. Não deixe pistas. Os jardineiros me ensinaram isso quando eu era criança. Eles nos ensinavam a confiar na memória, porque só se deve confiar no que não está escrito. O espírito viaja de boca em boca, não de coisa em coisa: livros podem ser queimados, documentos podem ser rasgados, computadores podem ser destruídos. Somente o espírito vive para sempre, e o espírito não é uma coisa.”

Nota: 4/5

>> Mais uma leitura que fiz em companhia da Lulu, mais uma discussão enriquecedora. Muito obrigada, amiga! (a resenha dela está aqui).

Esta resenha faz parte do Projeto Lendo Margaret Atwood. Veja AQUI a lista de títulos com os links para minhas resenhas já publicadas. Para ver as resenhas que a Lulu preparou especialmente para o projeto, clique AQUI.

Um comentário:

Lulu disse...

Ótima resenha, Mi! Bem lembrado, os Jardineiros de Deus pregam amor e respeito pelos seres vivos, mas de certa forma, desconsideram as mulheres. Os exemplos que você resgatou do romance mostram exatamente isso. Também fiquei surpresa de reencontrar as personagens de “Oryx e Crake” em “O Ano do Dilúvio”; Margaret Atwood interligou as narrativas com maestria. Mais uma vez, obrigada pela companhia (^_^). Beijos!