terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Leia o Livro, Veja o Filme: A Cor Púrpura


LIVRO: A Cor Púrpura

Em “A cor púrpura” conhecemos a protagonista, Celie, por meio de cartas que ela escreve para Deus e para sua irmã Nettie, de quem é forçada a se separar quando, ainda na adolescência, se casa com o violento Sinhô __. O longo histórico de abusos psicológicos e físicos de Celie iniciado por aquele que ela julgava ser seu pai é continuado por seu marido, que a vê apenas como empregada doméstica e mãe substituta para seus filhos mal-educados. No entanto, a sementinha que transforma a infeliz e submissa Celie em uma mulher independente e livre é plantada justamente em uma ocasião improvável: quando Sinhô __ leva a amante, Shug Avery, para morar com eles.

O livro me ganhou de cara devido à escrita simples que reproduz a oralidade e a instrução formal precária de Celie. Com a ingenuidade de uma garota de quatorze anos criada na área rural da Geórgia no início do Século 20, ela narra eventos duríssimos e mantém viva a esperança de um dia reencontrar a irmã que ela ajudou a fugir para que não vivesse uma rotina de abusos que ela mesma conhecia tão bem.

Em um ambiente em que brancos discriminam negros, ricos humilham pobres e homens batem em suas mulheres e filhos para exigir respeito e obediência, a violência dita as regras de comportamento, que são reproduzidas de geração em geração sem que sejam questionadas. Ou pelo menos é assim que acontece na maioria dos casos. No livro de Alice Walker, o degrau mais baixo da hierarquia desafia convenções e subverte padrões.

As personagens femininas são excelentes e, embora nem sempre concordem quanto a alguns assuntos, se fazem sempre presentes umas para as outras. Num nível comovente, vemos como elas rapidamente entendem que só conseguirão se sair bem (o que muitas vezes quer dizer sobreviver) se deixarem suas diferenças de lado e passarem por cima do ciúme e do orgulho – o crescimento é coletivo.

Outro ponto que me chamou a atenção é que os personagens são capazes de amar de forma realmente livre. Sim, é difícil acreditar em tal coisa, mas é assim que acontece no livro e não parece algo forçado em momento algum. Alice Walker não deixa passar nada. Nas cartas que Nettie escreve para Celie como missionária rola até uma crítica à exploração de países africanos por grandes potências mundiais que, além de lucrarem com as riquezas locais ainda forçam sua língua, seus hábitos e suas crenças aos povos colonizados.

Gostei muito da autoaceitação da Celie e da forma como ela passa a lidar com a própria sexualidade, mas acho que a maior transformação da personagem está relacionada com a religiosidade: se antes ela se resignava e colocava a felicidade nas mãos de Deus e na crença de uma vida melhor apenas depois da morte, suas experiências e suas conversas com Shug a fazem assumir as rédeas do seu destino e a encontrar a fé e a espiritualidade dentro de si mesma, se libertando de qualquer intermediário. Sem dúvida, a minha parte preferida.

“Aqui tá a coisa, Shug falou. A coisa queu acredito. Deus tá dentro de você e dentro de todo mundo. Você vem pro mundo junto com Deus. Mas só quem procura essa coisa lá dentro é que encontra. E às vezes ela se manifesta mesmo se você num tá procurando, ou num sabe o que que tá procurando. Os problema fazem isso pra maioria das pessoa, eu acho. A tristeza, nossa! A gente sentir que é uma merda.
Uma coisa? eu perguntei.
É. Uma coisa. Deus num é homem nem mulher, mas uma coisa.
Num é como nada, ela falou. Num é um show de cinema. Num é uma coisa que você pode ver separado de tudo o mais, incluindo você. Eu acredito que Deus é tudo, Shug falou. Tudo que é ou já foi ou será. E quando você consegue sentir isso, e ficar feliz porque tá sentindo isso, então você encontrou ele.
(...) Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara.”

Nota: 5/5

*Li para o #BingoLitNegra, mas só agora consegui assistir ao filme e fazer o post. Tá valendo!

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FILME: A Cor Púrpura

Com um elenco incrível que inclui Whoopi Goldberg como Celie adulta, Oprah Winfrey interpretando Sofia (primeira esposa de Harpo, enteado de Celie), Margaret Avery encarnando a polêmica Shug Avery e Danny Glover no papel do Sinhô ___, o filme de Spielberg consegue captar bem as complexas relações entre os personagens e mostrá-los com suas nuances.

Com medo de não dar conta de retratar devidamente a vida dos negros que viviam no sul dos Estados Unidos no início do Século 20, o diretor convidou a própria Alice Walker para escrever o roteiro – o que ela fez, mas depois pediu que Spielberg não o usasse e chamasse outra pessoa para a tarefa (o holandês Menno Meyjes foi o escolhido), sendo creditada apenas como consultora e acompanhando as gravações diariamente nos sets. Embora tenha sido indicado ao Oscar em 11 categorias, não levou nenhum prêmio. Whoopi Goldberg faturou o Globo de Ouro na categoria 'Melhor atriz em drama'.

Sendo uma história com tantos personagens, obviamente alguns tiveram que ficar de fora ou tiveram sua participação reduzida na tela (caso de Nettie, irmã de Celie, que só aparece quando criança e depois no finalzinho do filme). Aliás, das cenas mais bonitas do filme, duas que mais me agradaram não existem no livro: a separação das irmãs à força pelo Sinhô __ enquanto elas tentam a todo custo ficar juntas e abraçadas, e Nettie ajudando Celie em sua alfabetização e colando papeizinhos com o nome das coisas em cada item da cozinha e nas peças de roupa do próprio corpo.


A cena em que Shug Avery canta o 'Miss Celie’s Blues' no cabaré do Harpo enquanto a tímida Celie se sente importante e amada pela primeira vez na vida também é linda demais. E a carinha de admiração de Celie ao testemunhar sua primeira briga de bar é impagável!


Entre as mudanças que me desagradaram estão o envolvimento do Sinhô __ no retorno de Nettie para os Estados Unidos (bancando o herói) e o fato de Shug ter feito as pazes com o pastor que a escorraçou da igreja quando nova, numa cena que deixa implícito que ela era uma ovelha desgarrada que voltou ao rebanho (quando na verdade a mensagem do livro é exatamente o contrário: Deus está em cada um, não está na Bíblia, nem na igreja, nem dos pastores e padres). E achei que a abordagem da sexualidade (lésbica) de Celie por Spielberg foi sutil demais – mas considerando o histórico de trabalhos do cineasta, até que foi um milagre ter mostrado uma cena de Shug e Celie juntas, ainda que discretamente.

No geral, é um ótimo filme. Emociona sem ser melodramático demais. Recomendo fortemente.

Nota: 4/5

Shug cantando 'Miss Celie's Blues' no cabaré:


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