LIVRO:
A Cor Púrpura
Em “A
cor púrpura” conhecemos a protagonista, Celie, por meio de cartas
que ela escreve para Deus e para sua irmã Nettie, de quem é forçada a se
separar quando, ainda na adolescência, se casa com o violento Sinhô __. O
longo histórico de abusos psicológicos e físicos de Celie iniciado por aquele
que ela julgava ser seu pai é continuado por seu marido, que a vê apenas como
empregada doméstica e mãe substituta para seus filhos mal-educados. No entanto,
a sementinha que transforma a infeliz e submissa Celie em uma mulher
independente e livre é plantada justamente em uma ocasião improvável: quando
Sinhô __ leva a amante, Shug Avery, para morar com eles.
O
livro me ganhou de cara devido à escrita simples que reproduz a oralidade e a
instrução formal precária de Celie. Com a ingenuidade de uma garota de quatorze
anos criada na área rural da Geórgia no início do Século 20, ela narra eventos
duríssimos e mantém viva a esperança de um dia reencontrar a irmã que ela
ajudou a fugir para que não vivesse uma rotina de abusos que ela mesma conhecia
tão bem.
Em
um ambiente em que brancos discriminam negros, ricos humilham pobres e homens
batem em suas mulheres e filhos para exigir respeito e obediência, a violência
dita as regras de comportamento, que são reproduzidas de geração em geração sem
que sejam questionadas. Ou pelo menos é assim que acontece na maioria dos casos.
No livro de Alice Walker, o degrau mais baixo da hierarquia desafia
convenções e subverte padrões.
As
personagens femininas são excelentes e, embora nem sempre concordem quanto a
alguns assuntos, se fazem sempre presentes umas para as outras. Num nível
comovente, vemos como elas rapidamente entendem que só conseguirão se sair bem
(o que muitas vezes quer dizer sobreviver) se deixarem suas diferenças de lado
e passarem por cima do ciúme e do orgulho – o crescimento é coletivo.
Outro
ponto que me chamou a atenção é que os personagens são capazes de amar de forma
realmente livre. Sim, é difícil acreditar em tal coisa, mas é assim que acontece
no livro e não parece algo forçado em momento algum. Alice Walker não deixa
passar nada. Nas cartas que Nettie escreve para Celie como missionária rola até
uma crítica à exploração de países africanos por grandes potências mundiais
que, além de lucrarem com as riquezas locais ainda forçam sua língua, seus
hábitos e suas crenças aos povos colonizados.
Gostei
muito da autoaceitação da Celie e da forma como ela passa a lidar com a própria
sexualidade, mas acho que a maior transformação da personagem está relacionada
com a religiosidade: se antes ela se resignava e colocava a felicidade nas mãos
de Deus e na crença de uma vida melhor apenas depois da morte, suas
experiências e suas conversas com Shug a fazem assumir as rédeas do seu destino
e a encontrar a fé e a espiritualidade dentro de si mesma, se libertando de
qualquer intermediário. Sem dúvida, a minha parte preferida.
“Aqui
tá a coisa, Shug falou. A coisa queu acredito. Deus tá dentro de você e dentro
de todo mundo. Você vem pro mundo junto com Deus. Mas só quem procura essa
coisa lá dentro é que encontra. E às vezes ela se manifesta mesmo se você num
tá procurando, ou num sabe o que que tá procurando. Os problema fazem isso pra
maioria das pessoa, eu acho. A tristeza, nossa! A gente sentir que é uma merda.
Uma
coisa? eu perguntei.
É.
Uma coisa. Deus num é homem nem mulher, mas uma coisa.
Num
é como nada, ela falou. Num é um show de cinema. Num é uma coisa que você pode
ver separado de tudo o mais, incluindo você. Eu acredito que Deus é tudo, Shug falou.
Tudo que é ou já foi ou será. E quando você consegue sentir isso, e ficar feliz
porque tá sentindo isso, então você encontrou ele.
(...)
Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo
qualquer e nem repara.”
Nota:
5/5
*Li para o #BingoLitNegra, mas só agora consegui assistir ao filme e fazer o post. Tá valendo!
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FILME:
A Cor Púrpura
Com
um elenco incrível que inclui Whoopi Goldberg como Celie adulta, Oprah
Winfrey interpretando Sofia (primeira esposa de Harpo, enteado de
Celie), Margaret Avery encarnando a polêmica Shug Avery e Danny
Glover no papel do Sinhô ___, o filme de Spielberg consegue
captar bem as complexas relações entre os personagens e mostrá-los com suas
nuances.
Com
medo de não dar conta de retratar devidamente a vida dos negros que viviam no
sul dos Estados Unidos no início do Século 20, o diretor convidou a própria Alice
Walker para escrever o roteiro – o que ela fez, mas depois pediu que
Spielberg não o usasse e chamasse outra pessoa para a tarefa (o holandês Menno
Meyjes foi o escolhido), sendo creditada apenas como consultora e
acompanhando as gravações diariamente nos sets. Embora tenha sido indicado ao
Oscar em 11 categorias, não levou nenhum prêmio. Whoopi Goldberg faturou o
Globo de Ouro na categoria 'Melhor atriz em drama'.
Sendo
uma história com tantos personagens, obviamente alguns tiveram que ficar de
fora ou tiveram sua participação reduzida na tela (caso de Nettie, irmã de
Celie, que só aparece quando criança e depois no finalzinho do filme). Aliás,
das cenas mais bonitas do filme, duas que mais me agradaram não existem no
livro: a separação das irmãs à força pelo Sinhô __ enquanto elas tentam a todo
custo ficar juntas e abraçadas, e Nettie ajudando Celie em sua alfabetização e
colando papeizinhos com o nome das coisas em cada item da cozinha e nas peças
de roupa do próprio corpo.
A
cena em que Shug Avery
canta o 'Miss Celie’s Blues' no cabaré do Harpo enquanto a tímida Celie se sente
importante e amada pela primeira vez na vida também é linda demais. E a carinha
de admiração de Celie ao testemunhar sua primeira briga de bar é impagável!
Entre
as mudanças que me desagradaram estão o envolvimento do Sinhô __ no retorno de
Nettie para os Estados Unidos (bancando o herói) e o fato de Shug ter feito as
pazes com o pastor que a escorraçou da igreja quando nova, numa cena que deixa
implícito que ela era uma ovelha desgarrada que voltou ao rebanho (quando na
verdade a mensagem do livro é exatamente o contrário: Deus está em cada um, não
está na Bíblia, nem na igreja, nem dos pastores e padres). E achei que a abordagem
da sexualidade (lésbica) de Celie por Spielberg foi sutil demais – mas
considerando o histórico de trabalhos do cineasta, até que foi um milagre ter
mostrado uma cena de Shug e Celie juntas, ainda que discretamente.
No
geral, é um ótimo filme. Emociona sem ser melodramático demais. Recomendo
fortemente.
Nota:
4/5
Shug cantando 'Miss Celie's Blues' no cabaré:
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