sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Resenha: Mulheres vs. Monstros


Nesta coletânea idealizada e organizada por Cláudia Lemes, 11 autores brasileiros que escrevem ficção especulativa entregaram um combo de 1 conto + 1 ensaio curto, no qual falam sobre suas inspirações para as narrativas ficcionais.

Comprei o livro porque o tema chamou minha atenção. Mulheres são sobreviventes e enfrentam, desde o início dos tempos, todo tipo de monstros: de criaturas mágicas, sobrenaturais e de outros planetas até seres monstruosos de carne e osso que estão nas ruas, no ambiente de trabalho e dentro de casa. Alguns deles têm um rosto (conhecido ou não); outros são representados por instituições e dogmas de uma sociedade. Como se não bastasse, os monstros também podem estar dentro das mulheres, como algo que distorce a realidade e faz delas prisioneiras de si mesmas. E é de todas essas formas de monstros que essa coletânea trata.

A primeira história, Cavalo de Fogo, é futurista e se passa em outro planeta, mas o horror da protagonista é bem antigo: para encerrar sua missão na empresa de exploração em que trabalha e poder voltar à Terra, ela tem "apenas" que gerar algumas crianças. Em “Estalo”, uma mulher precisa lidar com seus monstros internos. Uns Trecos Bizarros é uma das minhas preferidas, e a autora leva 'Stranger Things' para uma cidade do interior do Brasil. A adaptação para a nossa cultura é excelente, com direito até à tradicional festa junina, alunos de catecismo e paçoquinha. Sim, há um monstro bem humano nessa história, mas nem por isso ela deixa de ser muito divertida.

“O Perseguidor” também se passa num universo bem real e foca numa mulher andando sozinha pela rua e desconfiando até do poste, vendo perigo em cada rosto e em cada esquina. É aquele monstro nosso de cada dia. Em Nellie Vai Para Casa temos mais um conto sobre alucinação, com um horror bem corporal. Já “A Noite Mais Longa do Ano” usa folclore para falar de preconceito.

“Protocolo Atena” e “Mãe” são ambientadas em outros mundos e tempos futuros, mas o monstro humano continua se sentindo superior e tratando com desdém tudo que desconhece e não lhe parece útil. “Os Filhos do Boto fala dos horrores das mulheres que tentam engravidar e são atacadas em seu momento mais vulnerável – me lembrou muito um caso famoso de abuso médico. Situação pavorosa, mas o conto é muito bom.

“Um Invasor” é sobre uma babá que tem que lidar, como indica o título, com um monstro que a vigia. Tem todo aquele ar de slashers e consegue equilibrar muito bem momentos de tensão com os ácidos comentários da protagonista. O trecho que selecionei para o post vem desse texto. O último conto, “Wildwood”, fala sobre o monstro dentro de casa e sobre papéis de gênero. Também está entre os meus preferidos.

Gostei muito da proposta de conto e inspiração, e achei todos os textos bons ou ótimos. Uma leitura que recomendo, com certeza.

“Sem nenhum resquício do constrangimento inicial, eu marcho até a cozinha e escolho uma faca entre tantas na gaveta. Pesada e reluzente, porque rico é assim mesmo. Vou checar. Sei que só as burras do cinema passeiam pela casa devagar para conferir, soltando no ar o notório 'quem está aí?', mas não vou ter paz até ter a certeza de que não há motivos para eu estar tão tensa. E como elas, as scream queens, eu caminho com cautela, um pé na frente do outro, o suor na testa me dizendo que sou uma cagona.”

Nota: 4/5

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