sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Resenha: Mal-Entendido em Moscou


Nicole e André são professores universitários aposentados na casa dos sessenta anos que fazem sua segunda viagem à União Soviética, em meados da década de 60. Lá, encontram a filha do primeiro casamento de André, Macha, que lhes serve de guia. A introdução dessa terceira pessoa na equação termina abalando as convicções e o relacionamento do casal.

André é um sujeito do tipo contemplativo. Ele gosta das coisas simples, de sentar e observar o mundo ao seu redor. Tenta sempre entender as motivações das pessoas e as engrenagens do sistema. Ao se aposentar em Paris, cidade em que mora, pretendia se dedicar à escrita, mas acabou se envolvendo com militância socialista, prestando ajuda a quem lhe pedia. Por fim, se viu soterrado em compromissos aos quais não conseguia dizer ‘não’. Assim, a nova viagem, para ele, tinha como objetivo rever a filha, desfrutar de sua companhia, descansar e ver mais de perto como funcionava aquele modelo de sociedade ideal que ele só conhecia em teoria.

Nicole, por outro lado, é uma mulher cosmopolita que se sente totalmente à vontade em meio à agitação parisiense. Independente e determinada, desde cedo aprendeu a contrariar o padrão de comportamento imposto, optando inicialmente pela carreira, para desgosto da mãe. No entanto, terminou com um casamento tradicional, filho e renúncias, e agora tem um certo ressentimento e implica com as mulheres de outra geração, que, segundo ela, querem conciliar tudo e acabam não fazendo nada direito. Para ela, o propósito da viagem era rever a enteada, de quem gosta muito, conhecer lugares que não conseguira visitar da primeira vez e passar um tempo ao lado do marido, sempre muito solicitado em sua terra natal.

Macha encarna a decepção: ela é a representação viva do socialismo real, muito diferente daquele idealizado pelo pai; para Nicole, ela é um incômodo, com sua juventude, magreza e disposição, bem como com a liderança que naturalmente assume em seu papel de guia turística; além disso, sua presença constante frustra as esperanças de Nicole de finalmente ter o marido todo para si.

Além de explorar muito bem as ilusões perdidas, tanto no campo pessoal quanto coletivo, a autora também é muito bem-sucedida ao expor as falhas de comunicação em uma relação, utilizando o recurso de apresentar alternadamente o ponto de vista de André e de Nicole sobre um mesmo evento. Por exemplo: Nicole, em certo momento, está cansada e com os pés doloridos – tudo o que ela quer é ficar no hotel a sós com André, relaxando e conversando – mas se força a caminhar mais, pois Macha criara um roteiro interessantíssimo, sabendo de sua habitual curiosidade, e julga, erroneamente, que André ficaria decepcionado ao perder a oportunidade de conhecer melhor a cidade e ao abrir mão da companhia da filha. Ele, por outro lado, inveja a disposição da esposa (sem saber o quanto ela está sofrendo) e imagina que seria estraga-prazeres pedir que ficassem sentados, apenas observando as pessoas; tampouco percebe que Macha estava com eles o tempo inteiro, e que Nicole gostaria ficar sozinha com ele por algumas horas.

De acordo com a orelha da minha edição, a novela “Mal-entendido em Moscou” foi escrita entre 1966-67 e deveria ter entrado no livro “A mulher desiludida” (1967-68), mas foi substituída por “A idade da discrição”, na qual a escritora mantém não só o casal assombrado pela velhice como trechos inteiros de “Mal-entendido em Moscou”, que só foi publicada em 1992.

“Diziam isto constantemente: a senhora tem um ar jovem, vocês são jovens. Elogios ambíguos que anunciam futuros penosos. Manter a vitalidade, a alegria e a presença de espírito é continuar jovem. Logo, são próprios da velhice a rotina, a melancolia, a caduquice. Dizem: a velhice não existe, não é nada; ou então: é muito bonita, muito tocante; mas, quando a encontram, fantasiam-na em palavras mentirosas."

Uma viagem de conhecimento e aproximação que acaba se revelando um enorme mal-entendido. Gostei muito.

>> "Mal-entendido em Moscou" é o livro escolhido para o primeiro debate do #LeiaMulheres em Itapetininga (SP), dia 14 de novembro, às 15:30. Todos os detalhes estão na página do evento. 

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