É em
um cenário desolador e opressivo, no Japão, que se passa nossa história. Na fábrica
de refeições prontas “Alimentos Miyoshi” foi onde se conheceram as quatro
mulheres que, por uma série de eventos infelizes, acabam esquartejando o marido
de uma delas. Junto com o grande contingente de brasileiros de descendência
japonesa e com as várias outras donas de casa de meia-idade, elas trabalham em
meio-expediente no turno da noite, realizando um trabalho físico vigoroso em
ritmo de máquinas. Embora tenham personalidades completamente diferentes, elas
se unem para resolver o incidente, pois sabem que não poderiam contar com a
ajuda de ninguém, principalmente pelo fato de serem mulheres.
“Ódio:
é o nome deste sentimento. A ideia ocorreu a Yayoi Yamamoto enquanto fitava seu
corpo de trinta e quatro anos nu no espelho. Bem perto do plexo solar, um
evidente hematoma azul-escuro. Seu marido acertara-lhe um soco nessa região na
noite passada, e, com o golpe, um novo sentimento nasceu dentro dela. Não, não
era exatamente verdade. O sentimento já existia havia tempo. Fez um gesto com a
cabeça e a mulher nua no espelho repetiu. Definitivamente o sentimento já
existia, só que Yayoi nunca fora capaz de nomear.”
(páginas
63-64)
Tudo
começa quando Yayoi Yamamoto estrangula o marido. Ela é uma jovem bonita, com 2
filhos pequenos. Mais uma vítima de violência doméstica que sofria em silêncio
enquanto o marido gastava todas as economias do casal com prostitutas e jogos.
Quando a oportunidade de se vingar do agressor surge, ela não a desperdiça,
embora não tivesse a intenção de matá-lo. Ao ter diante de si o corpo inerte do
marido, ela entra em desespero e conta o ocorrido a sua companheira de
trabalho, Masako.
Masako Katori
é uma mulher de quarenta e três anos, franzina mas muito forte, que dirige um
carro velho amassado e com a pintura descascando. É considerada uma mulher
durona e sensata pelas companheiras de trabalho. Em casa, enfrenta a solidão,
pois vive com o marido, que prefere manter-se isolado em um quarto separado, e
com o filho adolescente, que simplesmente foi se tornando distante, até deixar
de falar. Sem saber muito bem o que fazer, mas com grande senso prático, ela
decide ajudar a amiga, para ver se, de quebra, consegue sair do torpor que é
sua vida. Quando percebe que precisa de ajuda para dar fim ao corpo, divide a
história com Yoshie.
Yoshie
Azuma é uma viúva na casa dos 60 anos, conhecida como “Capitã” por ser a
funcionária mais rápida da fábrica e por comandar com mão de ferro a linha de
produção. Apesar da idade avançada e do corpo pequeno, ela demonstra um vigor
surpreendente no trabalho. Talvez para encobrir a situação precária de sua vida
doméstica, já que vive em uma casa minúscula e escura com a filha adolescente
exploradora e a ex-sogra acamada. Apesar de resistir à ideia de desmembrar um
corpo, ela cede ao saber que receberá pelo serviço. Considerando todas as
contas que tem para pagar e também o fato de que está prestes a ser despejada,
ela decide que não seria ruim ajudar a resolver o problema das amigas e ainda
conseguir dinheiro para ajeitar sua própria vida.
O
esquema estava armado e tudo corria bem, até que uma quarta participante não
convidada aparece para complicar os planos. A tal participante é Kuniko
Jonouchi, mulher de trinta e três anos (embora diga a todos que tem 29),
espalhafatosa, gorda e indiscreta, que enxerga na história uma oportunidade para conseguir o dinheiro de que precisava para pagar parte de sua imensa dívida, acumulada graças
ao seu consumismo desenfreado.
Embora
o livro tenha essas quatro mulheres como personagens principais no início, ao
longo da história outras pessoas nos vão sendo apresentadas e ganham mais
destaque na trama. É o caso, por exemplo, de Mitsuyoshi Satake, homem de
quarenta e três anos, forte e de aparência amedrontadora, dono do cassino e do
prostíbulo onde o marido de Yayoi costumava fazer a festa. Aos poucos, vamos
conhecendo seu passado negro e sua mente doentia e vemos crescer seu interesse
pelo crime praticado pelas mulheres e sua busca pela mulher perfeita (e aqui
não estou falando de perfeição física, mas de alguém que poderia compreender
suas loucuras).
Uma
coisa que me chamou a atenção foi como a autora expõe os problemas femininos no
livro. Ela consegue mostrar sem rodeios como a mulher é tratada na sociedade
atual, principalmente no Japão: o desafio de ser mãe-mulher-esposa-profissional,
o preconceito e o fetiche dos japoneses por colegiais.
Outro
ponto interessante é a presença de brasileiros nas fábricas. Nos últimos anos
até que esse movimento diminuiu um pouco, mas me lembro que nos anos 90 era bem
comum os descendentes japoneses irem para o Japão a fim de juntar dinheiro
trabalhando como operários. O cansaço e o sentimento de não-pertencimento são
mostrados na forma do funcionário Kazuo Miyamori. Nascido em São Paulo, filho
de um imigrante japonês e de uma brasileira, ela vai para o Japão pensando em
economizar para comprar um carro quando retornar ao Brasil, depois de 2 anos.
No entanto, no Japão ele é estrangeiro, não se mistura com o pessoal local,
sente falta do calor do Brasil, da comida, dos amigos, do futebol.
Com
uma trama bem amarrada e cheia de surpresas, o livro é altamente viciante e, no
fundo, mostra como somos todos solitários e o que fazemos para tentar nos
livrar dessa condição. A forma mecânica como as mulheres tratam o corpo do marido de
Yayoi deixa claro que somos apenas peças de uma grande engrenagem e que, no
fim, seremos reduzidos a nada como todas as outras coisas.
“Masako
ficou olhando para a pele opaca e pálida de sua careca. Se fosse possível esquecer-se
das ‘partes interessadas’, um cadáver era realmente uma coisa ser descartada
como qualquer outro tipo de lixo. O lixo é um derivado natural da vida humana;
e não é da conta de mais ninguém o que se joga fora ou quem o faz. Você só tem
que, quando a sua hora chegar, estar disposto a aceitar o fato de que também
será descartado junto com os restos”.
(página
387)
“Do
Outro Lado” é vencedor do Grande Prêmio Japonês de Melhor Romance Policial.
Natsuo Kirino é japonesa, formada em direito, e trabalhou em várias áreas antes
de se tornar escritora. É autora de 13 romances e 3 livros de conto. Este é o
primeiro romance da autora a ser publicado no Brasil. Espero que publiquem os outros logo!
Este post faz parte do Desafio Literário 2012 - Tema de Abril:
Escritores Orientais. Para ver minha lista de livros selecionados e outras
resenhas já postadas, CLIQUE AQUI.
7 comentários:
Parece ser uma boa história. Ah gosto muito da arte oriental.... beijos!
Esse foi um dos melhores livros que li no ano passado.
Apesar de ser meio macabro, o livro foi muito bom e muito bem elaborado.Uma das coisas que mais gostei,foi da quantidade de personagens. Teve os principais mas os secundarios tambem foram muito bem explorados,adorei mesmo.
Do outro lado,eh daqueles livros que vale a pena ler.
Oi xará :D
Adorei tua resenha, fiquei com vontade de ler esse livro, não conheço quase nada de literatura japonesa, acho que só li Kenzaburo Oe, acho que vou ler essa moça ai hehehehe
estrelinhas coloridas...
Olá, Michelle!
A sua resenha ficou maravilhosa! Apesar de não ter muito contato com a literatura japonesa, fiquei com vontade de ler esse livro!
Beijos!
Biih
http://hellostar.org
Enfim chegou a minha vez de ler esse livro, era um dos meus desejados.
E se é vencedor de premio fica ainda melhor.
Obrigada.
Oi, gostei bastante da sua resenha!
Também li um livro dessa autora para o DL e foi uma boa surpresa. Esse aí que você leu parece ser mais interessante, e se tem edição em português é melhor ainda. :)
Que coisa boa de ler parece ser!
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