O
livro apresenta duas histórias interligadas. A primeira começa com Alice e seu
filho Peter fugindo da guerra, tentando embarcar em um dos poucos trens
superlotados que deixavam a cidade. Não havia viagem direta, então eles
precisavam descer em uma estação e comprar bilhetes para seguir até a cidade
seguinte. Alice deixa Peter sentado em um banco segurando a mala e vai comprar
passagens. Ele aguarda a mãe por horas, até perceber que ela não voltaria mais.
A segunda é sobre as irmãs Helene e Martha, sua infância sofrida ao lado da mãe
doente, as perspectivas de uma nova vida em Berlim, o encontro do amor e a
guerra. Como a história desses personagens se entrelaça? Só lendo para saber...
“Martha
disse que pouco adiantava Mariechen ensinar-lhes os pontos, para que soubessem
bordar suas iniciais em linho. A mácula era sua origem, não as iniciais”.
(página
43)
Antes
de começar a ler o livro, procurei saber um pouco mais sobre ele e me deparei
com vários comentários negativos, principalmente quanto às motivações dos
personagens. O que pude perceber é que nada neste livro é escrito de maneira
direta. Leva-se tempo para ir juntando os cacos de informações e formar o
quebra-cabeça. Um dos principais alvos das críticas dos leitores era Selma, a
mãe de Helene e Martha. Desde o começo percebemos que a relação da mãe com as
meninas não era boa. Ela gritava com as filhas, batia nas garotas e as
insultava. Aos poucos, sua história vem à tona. Ela era judia e ateia, o que
fazia com que fosse vista como “estranha” e “diferente”, mesmo após morar há
mais de 10 anos no mesmo lugar. Além disso, Selma e o pai das meninas não
haviam se casado na igreja, como mandavam as tradições; tinham recebido apenas
a benção civil. Então ela era apontada nas ruas, excluída em sua própria vizinhança.
Isso fez com que Selma fosse se retraindo cada vez mais. Ela começou a
desenvolver TOCs, virou acumuladora de objetos; após o nascimento de Martha (a filha
mais velha), perdeu quatro filhos, não queria engravidar novamente, mas deu à
luz Helene. O marido a amava e percebia que estava doente, mas não sabia como
lidar com os transtornos psiquiátricos da esposa e não queria que fosse
internada em um manicômio, então a mantinha em casa e tentava fazê-la feliz. No
entanto, quando ele é obrigado a juntar-se ao exército e partir para a guerra,
a situação degringola de vez. Se tudo isso justifica tratar mal as filhas?
Lógico que não. Não é justificável, mas é compreensível. Não dá para exigir que
uma pessoa com tantos problemas psicológicos aja de forma racional.
O
mesmo acontece com a Alice, a mãe que abandona o menino na estação de trem. Não
é justificável, mas ao conhecermos o passado de Alice, sua infância
problemática, suas decepções amorosas, sua vida infeliz ao lado de um marido
violento e nazista e o futuro sombrio que vislumbrava para si mesma e para o
menino, é difícil não se colocar no lugar dela e tentar imaginar o que faríamos
em tal situação. O que pode parecer desnaturado talvez seja apenas um ato de
desespero. Como julgar alguém que toma atitudes drásticas em tempos de guerra?
Outro
ponto que pode ter desapontado os leitores é a abordagem de assuntos que não
são esperados em um livro que se passa em um período de guerra (pelo menos eu
não esperava). Quando pensamos em histórias em tempos de guerra, logo vêm à
nossa mente sofrimento, famílias destruídas, amores interrompidos, superação da
dor etc. Tudo isso está presente em “A mulher do meio-dia”, mas o livro também
trata de assuntos como lesbianismo e uso de drogas. Demorei a me convencer de que
era isso mesmo. Desde o começo a autora fala da proximidade entre as irmãs, em
como Helene gostava de acariciar as costas de Martha, de como a admirava, de
seu ciúme ao ver Martha com o namorado, da disputa das irmãs pela atenção de
uma amiga etc. Eu imaginei no começo que fosse apenas a descoberta da
sexualidade entre crianças/adolescentes, já que Helene, no início, tinha 7
anos, e Martha 16. Mas conforme as garotas crescem, vem a confirmação: sim,
elas sentiam atração por mulheres. A homossexualidade das personagens não me
chocou, mas não esperava ver o assunto abordado em um livro de guerra.
Preconceito da minha parte, ingenuidade? Não sei... só não imaginava.
O
uso de drogas pelos personagens também foi algo inesperado. Martha era
enfermeira, logo, tinha acesso a todo tipo de medicamento. A morte do pai e as
dificuldades com a mãe podem tê-la levado a esse caminho. No entanto, quando
Helene e Martha vão morar com a prima Fanny em Berlim, as drogas rolam solto.
Na capital cosmopolita, Martha embarca com a prima Fanny em noitadas regadas a
muita bebida e cocaína, o acaba afetando sua vida e também a de sua irmã. Mais
uma vez, seria ingenuidade minha não esperar essa vida boêmia? Talvez, mas
poucas vezes (ou nenhuma) vi esse assunto ser abordado em filmes e livros que se passam
em períodos de guerra.
Enfim,
“A mulher do meio-dia” é um livro muito bom, mas, para apreciá-lo, temos que
deixar as expectativas de lado, abrir a cabeça e aceitá-lo do jeito que é. Com
certeza será surpreendente.
P.S.
– O título original do livro é “Die mittagsfrau”, ou seja, literalmente “A
mulher do meio-dia”. Encontrei duas possíveis origens para esse nome. A
primeira vem de uma antiga lenda alemã, segundo a qual uma mulher (ou bruxa) aparecia
aos camponeses precisamente ao meio-dia e os castigava se eles estivessem
trabalhando na hora do almoço. A única forma de escapar aos castigos era
responder às perguntas feitas pela bruxa. A segunda hipótese vem de uma lenda
de origem eslava sobre uma bruxa que aparecia ao meio-dia para levar crianças
que desobedeciam aos pais. Para mim, ecos das duas lendas podem ser vistos no
livro. Muito interessante!
6 comentários:
Parece ser um livro muito rico, Michelle! Realmente essas questões que você apontou são raras em filmes de guerra porque a gente tem a sensação de que em situações extremas as pessoas só pensam em sobreviver. Bem legal. Beijo!
Ah esse livro está pra mim, adoro livros que fogem do lugar comum quando se trata de guerras. Como sempre adorei a forma como tu escreveu sobre ele.
estrelinhas coloridas...
Poxa,adorei a sua resenha.
Ainda nao conhecia essa autora e nem esse livro.
Irei pesquisar pelas bibliotecas,fiquei com muita vontade de ler a mulher do meio-dia,
um abracao.
Coube tudo isso em um livro só??
Hahaha... coube tudo isso.
A Lua resumiu bem: a gente pensa que em tempos de guerra as pessoas só querem sobreviver. Porém, isso não é tudo; elas tentam manter a rotina para não pirar, né?
Gostei da forma como você analisa o livro lido. O bom leitor não deixa p as entrelinhas e os subtextos passarem em branco. Muito bom! Beijocas
Postar um comentário