LIVRO: Um Crime Delicado
A
primeira vez que Antônio viu Inês eles estavam em um tradicional
boteco carioca. Entre colunas e paredes espelhadas, ele a observava e, em
certos momentos, achava que ela correspondia aos olhares. Mas naquele dia não
aconteceu nada. O encontro propriamente dito se deu dias depois, quando ele
descia a escada rolante do metrô e, subitamente, sentiu o peso de alguém que
rolava os degraus escorado em suas costas. Assustado, virou-se rapidamente e
deu de cara com a moça bonita do bar. Ofereceu-se para acompanhá-la até em casa
e foi então que reparou no detalhe que a tornava mais interessante aos seus
olhos: ela era manca.
Antônio
Martins é um crítico de teatro de meia-idade que leva uma vida boêmia, preza
sua liberdade e está sempre rodeado de belas mulheres, que ele escolhe como
companhia dependendo do programa (uma estreia de peça de teatro que ele precisa
avaliar, um cineminha à tarde, uma noite animada no bar ou momentos de
intimidade em seu apartamento). No entanto, é a garota tímida e com defeito
físico que ele elege como musa. Seja por fetiche ou pela simples aura de
mistério que envolve Inês, ela vira sua obsessão. O problema é que a obsessão
termina em crime, que Antônio jura não ter cometido. O que acompanhamos no
livro é a narração do próprio Antônio, que apresenta sua versão dos fatos no tribunal.
No
começo da trama, o romance predomina. É até bonitinho ver um cara cinquentão
agindo feito adolescente apaixonado, tentando descobrir informações sobre seu
objeto de desejo, ansioso pelo encontro, preocupado em agradar e tentando
proteger a amada. Todavia, ao longo da história começamos a perceber que não
era exatamente amor o que Antônio nutria por Inês (ou então era amor, mas não
muito saudável).
Depois
de uma noite em que beberam além da conta, ele volta para casa e não se lembra
exatamente o que aconteceu. Teme ter feito alguma besteira e magoado Inês.
Duvida de si mesmo. Mas não se empenha muito em saber o que houve. Aos poucos,
o ciúme vai brotando e, quando conhece o artista plástico que aluga o
apartamento para Inês e a usa como modelo, Antônio começa a ficar paranoico. Os indícios de sua perturbação vão aumentado e fica cada vez mais
evidente que ele não é tão inocente quanto alega.
O
livro me agradou por sua narrativa, que vai se mergulhando no psicológico do
protagonista, e também pela metalinguagem usada pelo autor, que usa a arte para
falar de arte e a figura de um crítico para fazer críticas. No geral, a mistura
de romance, suspense e crítica teve um resultado satisfatório, em uma trama que
gera certa repulsa, mas que certamente prende a atenção até o fim.
“Com
suas propriedades de velar e sugerir, foi esse biombo que descortinou para mim
não uma sequência de imagens encadeadas, mas uma cena relâmpago, como um
instantâneo fotográfico iluminado pelo espoucar de um flash da escuridão: a de
Inês deitada, para não dizer desfalecida, sobre um leito ou divã, enquanto eu
me debruçava sobre o corpo. Uma cena quase subliminar em minhas recordações,
mas suficientemente materializada para incluir uma perna atrofiada,
contrastando com a outra sadia, forte e, por que não dizer?, bela.”
Para quem gosta de entrar na mente perturbada dos protagonistas.
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FILME: Crime Delicado
Na
adaptação, Antônio é vivido por Marco
Ricca e Inês é interpretada
por Lilian
Taublib. De cara, é possível observar algumas diferenças: o crítico encarnado
por Marco Ricca não parece ser um cara de meia-idade e Inês não é apenas manca;
tem uma perna amputada. Além do aspecto físico dos personagens, os traços de
personalidade também se mostraram distintos, com uma Inês bem mais segura e
direta. Somando a nova personalidade ao uso das muletas evidente desde o
primeiro encontro (o que só era descoberto mais tarde por Antônio), a imagem de
mulher misteriosa perde a força.
Outra
coisa que elimina a possível desculpa que Antônio usa em sua defesa no tribunal
(de que não sabia da doença e da medicação de Inês) também perde o sentido logo
nos primeiros minutos de filme, quando Inês deliberadamente toma o remédio
tarja preta na frente do crítico e ainda faz uma brincadeira. Ou seja,
elementos importantes que sustentavam a obsessão e a falsa inocência de Antônio
são cortados na história desde o início da trama.
No geral, não gostei do filme. Achei que as alterações prejudicaram a história e a
interpretação de Lilian soou meio forçada no começo. Se houve algo que me
surpreendeu positivamente no filme foi a relação entre Inês e o pintor para
quem ela posava. Embora as pinturas tenham um forte caráter erótico, o depoimento do artista retirou toda a carga sexualmente negativa ou de abuso que seus
quadros e a interação entre retratada e retratista poderiam sugerir. As cenas
de peças espelhando o ciúme crescente de Antônio também foram bem bacanas.
Como
eu disse, a adaptação não me agradou e, portanto, não recomendo.
Trailer:
2 comentários:
Ano passado li um livro do Sérgio Sant'Anna chamado Monstro que contem três contos. O que dá título ao livro narra como dois amantes que queriam ter uma relação sexual "diferenciada" convidam uma estranha que conhecem na rua para participar desse "encontro". Porém, a história é muito bizarra, tinha tudo para ser boa, mas esse escritor tem uma forma estranha de contar suas histórias, envolvendo pessoas com deficiências físicas e depois tudo soa muito artificial. Fiquei sem nenhuma vontade de ler mais nada dele, embora seja um escritor muito conceituado.
Beijo!
Vixe, Flávia!
Então o fetiche não era do personagem, e sim do autor... Foi meu primeiro livro dele e gostei da história. Tenho outros aqui para ler. Depois te falo se rola bizarrice em todos os livros.
Bjo
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